A falta de um Livro Branco
A Constituição Federal declara que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e (…) da lei e da ordem”. A enumeração não é exaustiva; outros esforços — como as atividades notáveis das Forças Armadas na integração de comunidades afastadas do interior do País, a administração da aviação civil ou a atuação nas forças da ONU — são extremamente meritórios, mas não têm guarida naqueles objetivos constitucionais senão tangencialmente.
De todo modo, as excelentes realizações das Forças Armadas em tempo de paz não podem olvidar que a sua atividade precípua é a guerra, e é para a guerra que elas têm que estar preparadas — mesmo que nunca o precisem demonstrar. A Constituição veda ações agressivas por parte do Brasil, mas as Forças Armadas têm como seu primeiro dever constitucional a defesa da Pátria, presumivelmente contra invasões, ou ameaças de invasões, externas.
A realização operacional deste mandamento constitucional exige uma série de providências de caráter operacional, por parte dos comandos das Forças. Estas providências, por sua vez, dependem de um cálculo que aponte os riscos e as capacidades de possíveis inimigos. Tenha-se em mente que mesmo nações amigas podem ser consideradas como possíveis inimigos; trata-se aqui de um estudo de capacidades e não necessariamente de intenções. Assim, espera-se que os cálculos estratégicos das Forças Armadas avaliem as possíveis condições (e as respectivas respostas brasileiras) em caso de operações agressivas por parte de todos os nossos vizinhos, bem como de potências mundiais que têm capacidade de projeção de poder em nosso território; secundariamente, outras ameaças devem ser levadas em conta, como conflitos de baixa intensidade e possíveis financiadores externos. Nada disto é novo ou inusitado. Durante a década de 1930, por exemplo, as Forças Armadas dos EUA tinham planos de contingência para um conflito contra o Reino Unido (e vice-versa), embora os dois países já gozassem excelentes relações.
Mas o caso é que os planos de contingência têm que levar em conta, além da possibilidade de conflito, a probabilidade de sua ocorrência, bem como a probabilidade de mais de uma ameaça simultânea — uma “guerra de duas frentes”, por assim dizer. Assim, por exemplo, a Strategic Defense Review do Ministério da Defesa do Reino Unido prevê que as forças britânicas possam estar envolvidas simultaneamente, em locais distintos, em duas operações com a intensidade do conflito na Bósnia. Os resultados deste cálculo foram apresentados ao Parlamento em um White Book em 1998. As diretrizes nele expostas governam desde então as discussões parlamentares sobre as Forças Armadas britânicas: por exemplo, quais devem ser os efetivos das forças, quais devem ser os novos equipamentos encomendados, etc.
É lamentável que não exista mecanismo semelhante no Brasil. Lamentável e perigoso. Anualmente, o Ministério da Defesa encaminha ao Congresso as propostas orçamentárias das forças; anualmente, o Congresso as aprova, com ou (raramente) sem cortes, mas sem qualquer base em termos de utilidade estratégica das propostas apresentadas ou cortadas. Faltam ao Congresso informações essenciais que lhe permitam exercer corretamente o seu papel.
O caso mais notável em tempos recentes foi o do navio-aeródromo São Paulo. Não há dúvida que possuir um NAe é importante fator de prestígio internacional — como o próprio Presidente salientou em seu discurso na cerimônia de transferência do São Paulo. Mas quais são as suas missões? A página oficial da embarcação indica que são as “tarefas básicas do Poder Naval: controlar área marítima; negar o uso do mar; projetar poder sobre terra; e contribuir para a dissuasão estratégica”, além de dizer que “o NAe ‘SÃO PAULO’ e suas aeronaves contituem o principal elemento estratégico-naval do Brasil” . Como indica o próprio texto, as “missões” são as comuns a toda a arma naval, qualquer que seja a plataforma utilizada.
E onde está a estratégia? Os recursos empregados no São Paulo não são poucos e uma das facetas mais importantes da estratégia é precisamente saber onde alocar recursos. É possível que, se dispusesse das informações de um “Livro Branco da Defesa Brasileira”, o Congresso decidisse que era preferível substituir a aquisição do São Paulo pela aquisição de três ou quatro fragatas, ou submarinos, ou pelo reforço à aviação de patrulha. Mas essas informações não foram oferecidas e a discussão, como já ocorrera décadas antes com o Minas Gerais, centrou-se em questões de prestígio para o Brasil e para a Marinha, quando deveria ter-se centrado em questões estratégicas.
A criação do Ministério da Defesa traz a esperança que esta falha seja sanada e que o Congresso — e, portanto, o público em geral — tenha em breve um plano de diretrizes estratégicas que auxilie a tomada dessas importantes decisões. A sua falta prejudica a capacitação estratégica do país.
Comentários de leitores
Paulo Rick: Na sua HP vc fala que não existe um Livro Branco para das FA´s brasileiras, e cita a compra do NAe SP como exemplo da falta de um Livro Branco. Pelo que pude entender a MB é a única FA brasileira que possui um Livro Branco, que tem o nome de Diretrizes e Estratégias da MB. Vc conhece este documento? Dá mesma forma a MB divulgou alguns documentos referentes a opção por um NAe, que não se tratou de forma alguma de algo decidido na ocasião.
Não, não conheço. Vou procurar encontrá-lo (ou algum dos colegas o tem?). Não tenho dúvidas que a MB não decidiu comprar o NAe em um rompante, e que de fato tem um projeto para ele; o que eu vejo de problema no caso é que a sociedade civil (no caso, representada pelo Congresso) não participou deste planejamento, salvo para aprovar a aquisição do Foch. Um documento produzido por uma das forças, por mais abrangente que seja, continua sendo apenas um ponto de vista sobre o assunto. Por sinal, tenho certeza que as outras forças têm documentos semelhantes, como já os tiveram no passado (como o documento que deu origem ao projeto FT-90 do Exército na década de 1980).
Mas falta um documento que seja ao mesmo tempo produto de uma discussão com a sociedade civil e que inclua as três forças. Não conheço a história imperial para falar sobre este período, mas no período republicano as forças armadas nunca tiveram um planejamento conjunto a partir de diretrizes comuns; e eu acho que isto é uma falha estratégica grave.
José Theodoro Menck: Muito interessante a crítica feita a ausência de um “livro branco” na Marinha de Guerra brasileira. Principalmente diante da compra do Porta-Aviões São Paulo. Isso me faz recordar que nos primórdios do século XX o Brasil passou por uma modernização de sua frota. Na ocasião o Barão do Rio Branco, reconhecidamente um dos maiores conhecedores de nossa história militar, com suas implicações táticas e estratégicas, mas sempre um civil, advogou a tese de que a Marinha deveria comprar diversos pequenos navios, que pudessem vir a ser úteis em eventuais campanhas que o Brasil pudesse vir a ter com seus vizinhos, mormentemente nos rios amazônicos, e ao mesmo tempo espalhá-los por todo o litoral brasileiros. O então titular da pasta da Marinha, cujo nome não me recordo no momento, objetou a idéia, preferindo a compra de dois dos maiores navios de guerra então existentes no mundo, dois “dreadnoughts” (ironicamente um dos quais denominado São Paulo), que, pela potência e enormidade dos dois, dariam muito mais prestígio à Marinha de Guerra brasileira…
Creio que o titular da Marinha à época era o Almirante Alexandrino. De fato, a aquisição dos dreadnoughts colocou a Marinha brasileira mais uma vez entre as primeiras do mundo. E o Barão do Rio Branco foi um de nossos estadistas de mais ampla visão estratégica, como o reconheciam mesmo seus adversários. Infelizmente não sei se o mesmo já acontecia com as forças armadas brasileiras; a capacitação para um pensar estratégico foi um processo demorado, que permeou toda a primeira metade do século XX.
De todo modo, peço licença para ressaltar que a minha crítica pela falta de um “Livro Branco” não se restringe à Marinha; usei o caso do São Paulo apenas para ilustrar o ponto. Todas as nossas Forças Armadas carecem de uma formulação estratégica abrangente e submetida à apreciação do Poder Legislativo. Mas, em lugar do “Livro Branco”, temos uma série de “caixas pretas” na Defesa. Mais grave do que o efeito exercido sobre a necessária supervisão civil da estratégia, é provável que isso redunde em prejuízo operacional para as nossas forças.
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