1870
A série de jogos 18xx, iniciada na década de 1970 com o jogo 1829, já deu origem a várias dezenas de jogos. Tive durante muito tempo o 1830, publicado pela antiga Avalon Hill, mas vendi-o há alguns anos sem nunca tê-lo jogado. Agora, depois de ler mais a respeito da série, voltei a interessar-me e decidi adquirir o 1870, um jogo de ferrovias e mercado de capitais. Veja a seguir as minhas impressões sobre o jogo, após duas partidas bastante intensas.
O tema de 1870 é o desenvolvimento ferroviário da região trans-Mississippi nas décadas seguintes à Guerra de Secessão americana. O principal tabuleiro do jogo mostra um mapa simples desta região, indo de St. Louis a Austin.
O componente ferroviário de 1870 é relativamente simples. Cada companhia pode colocar trilhos em sua vez de jogar, sejam trilhos novos ou upgrades de trilhos já existentes. Normalmente a colocação de trilhos não custa dinheiro, salvo em locais pouco propícios à construção (como montanhas, rios ou a costa do Golfo do México). Como o mapa não é grande, rapidamente as malhas ferroviárias das várias companhias vão se conectar; mas, ao contrário de outros jogos ferroviários, os trilhos não têm donos e os trens de todas as companhias podem trafegar por qualquer trilho livremente.
Não existe um sistema de produção e consumo de bens a serem transportados. A renda de uma determinada rota de trens é determinada a partir da quantidade e do tipo de cidades (grandes ou pequenas) que o trem visita em sua rota. Existe uma progressão nos tipos de locomotivas, que variam da 4-4-0 American em uso no início do período até as grandes 4-6-6-4 Challenger da década de 1930 (ao contrário de outros jogos da série 18xx, não há diesels). Cada locomotiva tem uma graduação numérica que indica quantas cidades ela pode percorrer; esta graduação varia de 2 (indicando somente uma cidade de origem e uma de destino) até 12 (uma cidade de origem, uma de destino e até dez cidades intermediárias). Locomotivas mais potentes custam mais caro e, mais importante, definem as fases do jogo, que introduzem mudanças decisivas nas regras do jogo: por exemplo, quando as locomotivas tipo 3 entram em jogo, pode-se fazer upgrades de trilhos do tipo verde, quando as locomotivas tipo 5 entram em jogo a quantidade de trens que cada empresa pode operar diminui, e assim por diante. Um componente essencial da estratégia de um jogador de 1870 é a atenção a estas mudanças de fases e a preparação para elas.
Além dos trilhos e dos trens, as companhias podem colocar uma quantidade limitada de estações em cidades grandes. Inicialmente, cada cidade grande suporta uma estação apenas, mas upgrades aumentam este número para duas (e até três no caso de Kansas City). A importância das estações é dupla. Primeiramente, toda rota operada por uma companhia tem que incluir ao menos uma estação desta companhia em algum ponto do percurso. Segundo, quando os espaços para estações de uma cidade estão ocupados, trens de outras companhias não podem passar por aquela cidade, mas apenas utilizá-la como ponto inicial ou final de uma rota. Assim, a colocação de estações é outro componente essencial da estratégia de jogo.
Se o componente ferroviário de 1870 é relativamente abstrato, o mesmo não pode ser dito de seu mercado de capitais. Os jogadores podem adquirir ações das 10 companhias disponíveis; quem controla mais ações em uma companhia é o seu presidente e toma as decisões em nome da companhia. Quando pelo menos 60% das ações de uma companhia estão em mãos dos jogadores, a companhia entra em funcionamento e pode passar a operar trens.
Além do tabuleiro com o mapa do jogo, 1870 inclui um tabuleiro com uma matriz bidimensional cujas células correspondem aos valores das ações das companhias. Cada companhia tem um marcador que indica a sua posição na matriz e, assim, indica o valor de mercado das suas ações. Quando as ações se valorizam, elas andam para cima ou para a direita; quando uma ação se desvaloriza, ela anda para baixo ou para a esquerda.
Durante uma rodada de operações, as companhias operam seus trens e recebem as rendas correspondentes às rotas que percorrem. Cabe então uma decisão crucial para o presidente da companhia: o que fazer com esta renda. Ele pode distribuí-la aos acionistas (inclusive ele, decerto) sob forma de dividendos, o que também valoriza as ações da companhia. Ele pode pagar meios dividendos, dividindo a renda igualmente entre a empresa e os acionistas, o que não tem impacto sobre o valor das ações. Ou ele pode pagar zero dividendos, mantendo o dinheiro em poder da companhia e desvalorizando as ações.
Esta decisão tem múltiplos impactos. Pagar dividendos beneficia o presidente (por definição, o maior acionista), mas também beneficia outros detentores de ações da companhia. Por outro lado, isso deixa a companhia sem fundos. Deixar de pagá-los desvaloriza as ações, mas aumenta o capital de giro da empresa, o que pode ser crucial em um momento de troca de locomotivas, por exemplo.
Realizada a rodada (ou rodadas) de operações, os jogadores passam a uma rodada de mercado de capitais. As operações que os jogadores podem fazer durante esta rodada são simples: comprar e vender ações. Mas aqui está o cerne das decisões estratégicas do jogo. Comprar uma ação de sua própria companhia ou da companhia de um adversário? Criar uma nova companhia? Vender ações e deixar de auferir dividendos, mas ao mesmo tempo depreciando uma companhia? Procurar adquirir mais ações de uma companhia que outro jogador e tomar-lhe a presidência da companhia? Usar o tesouro da companhia para proteger o seu valor de mercado ou permitir a sua desvalorização? Estas são apenas algumas das muitas decisões que os jogadores devem tomar durante o funcionamento do mercado de capitais. Cada decisão tem várias ramificações e não existem respostas simples.
Um fator essencial na densidade tática e estratégica de 1870 é que não existe um componente aleatório no jogo, nem informações ocultas. Se em duas partidas os jogadores tomarem as mesmas decisões, o resultado final será exatamente o mesmo. O jogador tem em mãos todas as premissas para seu pensamento; tirar as conclusões certas é o que determinará o vencedor.
O fim do jogo ocorre quando um jogador vai à falência ou quando o banco fica sem dinheiro. O vencedor é o jogador com a maior riqueza acumulada, considerando-se o valor das ações em seu poder e o valor do dinheiro em mãos.
1870 é um jogo demorado. Jogadores experientes relatam completar uma partida em cerca a 4 horas, mas minhas duas partidas (ambas com jogadores novatos) ficaram em 6 horas e não terminaram. Por outro lado, é um jogo intenso; nas duas partidas os jogadores ficaram discutindo após o jogo as decisões que tinham tomado (o que eu tenho tendência a interpretar como a marca de um bom jogo). As duas partidas certamente deixaram-me com vontade de jogá-lo mais vezes.
De notar-se que, seguindo as sugestões encontradas no BoardGameGeek e nas páginas especializadas na séria 18xx (como http://www.18xx.net/), preferimos utilizar fichas de pôquer e não as cédulas de papel que vêm com o jogo. Posso afirmar com segurança que esta é uma sugestão de grande valia. Muito dinheiro circula no jogo e contar fichas é muito mais fácil e rápido que contar cédulas de papel. Montei um banco de fichas com $12.000, exatamente equivalente ao banco original (o que é necessário, já que o dinheiro no banco define a duração do jogo).
1870 é um bom jogo, com muitas decisões a tomar e múltiplas ramificações em cada decisão. Ele permite uma grande variedade de táticas e estratégias. Não é um jogo para todos os gostos, devido especialmente à sua longa duração. Mas, para os que não têm medo de jogos intensos e demorados, é uma excelente aquisição.
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