Mentiras, parte II

17 de Abr de 2016

Há dois dias, escrevi um pequeno texto sobre formas variadas de mentiras. Ocorreu-me discutir algumas outras, também referentes à presente crise, e averiguar a natureza da falsidade em cada uma delas.

  1. Começo por uma das mais ostensivas. Na defesa da presidenta Dilma, apresentada à comissão especial da Câmara dos Deputados, o Advogado-Geral da União afirmou que há dúvidas sobre os crimes de responsabilidade imputados à presidenta, e coroou seu argumento declarando que seria um princípio elementar do Direito que, em caso de dúvida, não se processa.

Trata-se de evidente truque retórico, uma verdadeira jogada para a plateia. Em caso de dúvida não se condena. Mas o processo serve justamente para dirimir a dúvida. A decisão da comissão especial – e, amanhã, do plenário da Câmara – diz respeito ao início do processo, e não ao seu fim. Se há dúvida, conforme o Advogado-Geral confirma, então é necessário que o processo seja aberto, e que o Senado avalie as provas e as alegações de ambas as partes. Este será o processo, este será o momento de dirimir a dúvida.

Surpreende que o Advogado-Geral, supostamente um advogado experiente, assim distorça o conhecido brocardo jurídico in dubio pro reu. Temos, aqui, uma mentira ostensiva, que procura se mimetizar.

  1. Os defensores dos nossos governantes mantêm, há muito, uma verdadeira cruzada contra vários meios de comunicação. Talvez o alvo principal sejam as organizações Globo, e por tabela a família Marinho, que as controla.

Recentemente, surgiram fortes indícios que sugerem crimes de evasão fiscal por parte de membros desta família. Vários destes indícios foram levantados pela operação Lava-Jato, outros foram divulgados pelo vazamento dos Panama Papers.

Há poucos dias, li em um dos blogs sujos uma longa matéria expondo todas as ligações perigosas entre  vários membros da família Marinho e empresas ligadas a operações criminosas. Algumas ligações são apenas inferências, mas o jornalismo investigativo é assim mesmo. Certamente há indícios suficientes para merecer uma investigação mais aprofundada.

Pelo meio da matéria, o seu autor diz que, como a Lava-Jato descobriu estes indícios, o juiz Moro deve indiciar e prender estas pessoas.

Esta é a mentira, que quase passa despercebida em meio a uma grave denúncia. Primeiro, como acontece com todo juiz, o juiz Sérgio Moro age mediante provocação – o termo técnico que indica que alguém (normalmente o Ministério Público) tem que levar o caso a seu conhecimento, e pedir uma medida concreta (por exemplo, uma prisão, ou um procedimento de busca e apreensão). O juiz Sérgio Moro não pode ordenar estas ações por iniciativa própria.

Mas a mentira ainda vai mais longe. A equipe do Ministério Público que participa da operação Lava-Jato não investiga todos os crimes de que toma conhecimento! Cabe a eles investigar os crimes ligados ao gigantesco esquema de corrupção na Petrobrás. Qualquer informação sobre outros crimes – como um possível crime de evasão fiscal da família Marinho – deve ser comunicada a outros órgãos, para que estes tomem as providências devidas. Obviamente, este tipo de comunicação, e as investigações dele resultantes, não são publicados – é da natureza destes procedimentos que sejam conduzidos em sigilo!

A mentira aqui também é ostensiva, mas ela está perdida em meio a muitas informações sérias, e ela ainda alimenta um preconceito compartilhado por muitos; vem daí a sua credibilidade.

  1. Vamos agora a um exemplo mais sutil. “Não há nenhuma acusação de corrupção contra a presidenta Dilma!” É verdade. A mentira reside no subentendido a esta frase: “se não há acusação de corrupção, não há porque impedi-la”.

Ocorre que o processo por crimes de responsabilidade não se confunde com eventuais processos por corrupção. No presente processo, Dilma é acusada de realizar operações orçamentárias que não poderia fazer, dentro de nosso sistema legal. Nada disso diz respeito a sua probidade pessoal.

Note-se, ainda, que a presidenta Dilma poderia estar sendo investigada, e mesmo ter sido indiciada, por sua atuação à frente do Conselho Diretor da Petrobrás – exceto pelo fato que ela é a presidenta! Ignoro se este processo terá continuidade, mas isso só poderá acontecer depois que ela deixar o cargo.

Esta mentira, então, procura se esconder sob uma verdade. Corrupção é um crime grave, mas não é o único tipo de crime que existe.

  1. Por fim, um tipo de mentira que tem sido amplamente utilizada pelos defensores dos nossos governantes. O ex-presidente Lula foi acusado de ser o real proprietário do sítio em Atibaia e do triplex no Guarujá. A resposta estridente dos seus áulicos é “Os imóveis não estão no nome dele!”

Sim, é verdade. E é exatamente disto que ele está sendo acusado! Se os imóveis estivessem no nome dele, ele teria que explicar como conseguiu pagá-los, mas isto é outra história. O que suscita a acusação é a circunstância de, não sendo ele o dono formal dos imóveis, agir como se fosse. Não ter os imóveis em seu nome é parte essencial da acusação.

Mais uma vez, a mentira reside no subentendido “se ele não é o dono formal, então ele não é o dono” – e cheguei a ver alguns de seus áulicos afirmarem que estas acusações negam validade a documentos que têm fé pública (as escrituras do registro de imóveis).

Sim, estas acusações negam validade a estes documentos. Não porque haja suspeitas sobre o registro de imóveis, mas porque se suspeita – com fortes evidências – que tenha havido informação falsa a estes registros. Assim, é da natureza do crime que ele não seja o dono formal dos imóveis. Afirmar isso como contestação à acusação não faz sentido – exceto como jogo de cena, para enganar os incautos.

Este tipo de mentira, assim, afirma uma parte da verdade, mas insinua que ela é toda a verdade.

Em outra ocasião poderei discutir outras mentiras e sua natureza. Mas não agora; trabalhar com estas afirmações enoja, e cansa.

Somente assinantes podem enviar comentários.

Assine agora!

Já tem uma assinatura? Entre!

LC, o Quartelmestre

Também conhecido como Luiz Cláudio Silveira Duarte. Escritor, poeta, pesquisador, jogador, polímata, filômata... está bom para começar.