Tribunais raciais

3 de Ago de 2016

O estado nazista foi responsável por atrocidades grandes e pequenas. Como diz o dr. Erskine, no filme  “Capitão América - o primeiro vingador”, é fácil esquecer que o primeiro país que os nazistas invadiram foi a Alemanha — e, acrescento, com a anuência e a colaboração de grande parte da população.

Mas quero tratar aqui de um dos aspectos menos famosos da estrutura do Terceiro Reich. A fundamentação ideológica do nazismo era a noção de existir uma hierarquia de valor nas  raças  humanas. Os “arianos” seriam a raça suprema, os “judeus” seriam a raça mais desprezível, com toda uma gradação entre ambas.

(Incidentalmente, os termos entre aspas correspondem a conceitos que não têm correspondência na realidade.)

Partindo destas sandices, não é de surpreender que os nazistas tivessem uma série de normas sobre “pureza racial”. Antes de 1933, as normas se aplicavam apenas aos membros do partido; após a tomada do poder, estas normas foram sendo progressivamente aplicadas a todas as pessoas alcançadas pelo poder do Estado nazista.

O regime nazista impôs a exigência de prova ancestral em grande escala. Durante os doze anos do Terceiro Reich, o Estado e as autoridades do partido promulgaram cerca de duas mil normas, que estabeleceram direitos legais com base no status ‘racial’. As pessoas alcançadas por alguma destas normas tinham que provar sua aceitabilidade racial […]  (Ehrenreich 2007, 58).
A despeito da teia de regulamentos que exigiam a prova ancestral, em grau maior ou menor, em 1936 o autor de um livro popular sobre pesquisa genealógica escrevia que ‘até agora, o principal método de prova oficial de ancestralidade ariana ainda é essencialmente o uso da confissão religiosa e a declaração pessoal.’  (Ehrenreich 2007, 63)

Os nazistas não conseguiram estabelecer qualquer tipo de critério empírico, “científico”, que pudesse identificar as “raças inferiores” — ou mesmo os “arianos” de seu fetiche. Não é de surpreender que não tenham conseguido: há muito que a ciência mostra que não há diferenças entre as supostas “raças” humanas. Nas palavras que Shakespeare pôs na boca de Shylock:

Eu sou um judeu. Não tem olhos um judeu? não tem ele mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? alimentado pela mesma comida, ferido pelas mesmas armas, curado pelos mesmos meios, aquecido e resfriado pelo mesmo inverno e verão que um cristão? Se nos espetais, não sangramos? Se nos fazeis cócegas, não rimos? Se nos envenenais,  não morremos? E, se nos fizerdes mal, não nos vingaremos?  (Mercador de Veneza, ato III, cena I)

Por conta da falta de critérios, o Estado nazista não chegou a criar um  tribunal racial , que julgasse a  aceitabilidade racial  das pessoas submetidas às suas normas. Ehrenreich conclui seu estudo com estas palavras:

Mesmo na Alemanha nazista, não seria difícil afirmar que a ideologia científica racial era, fundamentalmente, uma série de afirmativas não provadas, expressa em palavrório científico […] Muitos alemães, nesta época, eram perfeitamente capazes de fazer uma avaliação informada da razoabilidade das alegações sobre o mal inerente dos judeus. Que esta sociedade tenha sido capaz, apesar disso, de produzir um genocídio gigantesco, com base nesta ideia, provoca a questão: até que ponto a moderna civilização ocidental se fundamenta sobre um discurso racional?  (Ehrenreich 2007, 173-174).

É sempre penoso mergulhar na cloaca do nazismo. Por que o faço hoje?

Porque a humanidade avança, e nosso Estado está conseguindo ultrapassar o Terceiro Reich.  Criamos tribunais raciais. Como a ciência continua sem dar uma base fática a esta fantasia perniciosa, nossa solução é simples: vale a aparência da pessoa (chamada  “aspectos fenotípicos”, para usar um palavrório científico).

É a mesma coisa que os nazistas faziam. Mas nem eles tiveram coragem de criar uma norma afirmando isso.

Referências

Eric Ehrenreich (2007). The Nazi Ancestral Proof: Genealogy, Racial Science, and the Final Solution. Bloomington: Indiana University Press.

Orientação Normativa nº 3, de 1º de agosto de 2016, da Secretaria de Gestão de Pessoas e Relações do Trabalho no Serviço Público, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Publicada no Diário Oficial da União, 2 de agosto de 2016, seção I, página 54.

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LC, o Quartelmestre

Também conhecido como Luiz Cláudio Silveira Duarte. Escritor, poeta, pesquisador, jogador, polímata, filômata... está bom para começar.