Coringa (2019)

24 de Out de 2019

Há alguns dia, fui ver Coringa no cinema. [Nota: há alguns spoilers abaixo.] Um filme perturbador; quase saí antes do final. Reconheço o brilho magistral de Joaquin Phoenix e de Todd Philips, sem discussão.

Acrescento que discutir se o seu Coringa é o “verdadeiro” seria completa perda de tempo. Assim como acontece com Dom Quixote, Sherlock Holmes, ou uma miríade de outros personagens, cada visão do Coringa é única e pessoal. Arthur Fleck é o Coringa de Todd Philips e de Joaquin Phoenix – e as declarações deles deixam muito claro que eles sabem bem disso. Minhas considerações, abaixo, fundamentam-se em o que é o meu Coringa, e não pretendo que minha interpretação seja  mais correta  ou superior à do Coringa do filme.

Isto posto… Arthur Fleck é um homem doente em uma sociedade doente. Ele inspira piedade e repulsa, tanto quanto inspira revolta contra a sociedade que o criou – talvez a mesma revolta que a população demonstra ao final do filme. É perfeitamente possível entender como ele chegou ao crime; o filme mostra explicitamente o seu percurso.

Vem daí a primeira falha. Fleck faz sentido; mas o Coringa não faz sentido. É o mesmo problema que tive com o filme Alice no País das Maravilhas (2010), de Tim Burton: ele deu sentido ao País das Maravilhas. A criação genial de Lewis Carroll era conscientemente, propositalmente nonsense; paradoxalmente, isso lhe dava uma consistência que estava ausente na obra de Tim Burton.

Fleck faz sentido. Entretanto, se o seu sentido é suficiente para explicar as mortes do filme, é completamente insuficiente para explicar o Coringa – que, justamente, desafia qualquer explicação ou sentido. Como diz o Coringa de Alan Moore e Brian Bolland, ele prefere ter um passado de múltipla escolha.

A segunda falha que identifico diz respeito ao elo entre o Coringa e o Batman. O filme estabelece uma relação muito tênue entre os dois – e pior, mais uma vez é uma relação que faz sentido. Joe Chill aqui não é um zé-ninguém, em apenas mais um crime aleatório entre os muitos da cidade: agora ele é um anônimo mascarado, parte de uma turba inspirada por um Fleck idealizado, mesmo idolatrado. Para piorar, Bruce Wayne já havia presenciado o próprio Fleck cometer um ato agressivo. Dentro desta acepção, portanto, podemos entender Batman como uma reação ao Coringa, perpetrada por um menino que assiste, impassível e distante, a atos de violência cometidos sob seu olhar.

Em outras interpretações, Batman precede o Coringa. Este, por sua vez, pode até ser entendido como uma reação a Batman – o Jim Gordon de Gary Oldman sugere isso na cena final de Batman Begins (2005). Mas o Coringa de Heath Ledger mostra claramente a interpretação mais comum: o Coringa é a face riscada da moeda que tem Batman na face íntegra. Um não pode existir sem o outro. Pior: Batman é tão insano quanto o Coringa – mas o Coringa nada de braçada na sua insanidade, enquanto Batman rejeita e esconde a sua. Somente às vezes é que as duas insanidades se reconhecem, como nos inspirados quadrinhos finais de A Piada Mortal (1988).

Ver o filme de Philips e Phoenix me motivou a ver novamente O Cavaleiro das Trevas, especialmente para cotejar as duas interpretações do Coringa. Havia alguns anos que eu não via o filme de 2008; lembrava dele como um filme bastante violento. Vendo com um olhar mais analítico, fiquei surpreso em constatar que a violência é muito mais psicológica do que gráfica. Como o filme mais recente, é um filme que angustia; mas ao menos oferece um pouco de satisfação catártica ao final, o que alivia um pouco esta angústia.

Encerro retornando aos elogios a Phoenix e Philips. Li algumas críticas menosprezando o trabalho de Phoenix. Criar um personagem com esta complexidade e profundidade é tarefa para poucos; é sempre bom ver trabalho duro dar bons resultados.

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LC, o Quartelmestre

Também conhecido como Luiz Cláudio Silveira Duarte. Escritor, poeta, pesquisador, jogador, polímata, filômata... está bom para começar.