O Haiti não é aqui

blog 18 de Mar de 2020

Há poucos dias, um imigrante haitiano chamou Bolsonaro às falas, exatamente no local no qual o presidente recebe a adulação de seus fãs.

O ato do anônimo imigrante é meritório por si, claro, e suas palavras ressoaram nas almas de muitas pessoas.

Mas, a esta altura dos acontecimentos, é provável que muitos tenham se esquecido de como tantos haitianos vieram para o Brasil, e o que aconteceu com eles.

O Haiti

O Haiti tem uma história de sangue e dor. Tem a distinção de ser o único país do mundo criado por escravos que conseguiram conquistar a liberdade, em uma rebelião às margens da Revolução Francesa. Também foi o primeiro país americano a ter um imperador, anos antes de Agustín I e de Pedro I. Infelizmente, os frutos deste começo promissor foram um desastre: novas formas de escravidão substituíram as antigas (interessados no tema podem procurar informações sobre os restavecs), a maior parte da população vive em condições miseráveis, o país sofre desde sempre sob uma classe rica profundamente predatória. Em 2010, a ilha sofreu os efeitos de um terrível terremoto, que causou mortes e danos catastróficos à população, e foi seguido por uma epidemia de cólera, provocada pelo descaso das tropas de paz da ONU – que, desde então, foge a qualquer possibilidade de arcar com os prejuízos e com as indenizações que deveria pagar.

Foi neste cenário que Dilma Rousseff visitou o Haiti, em janeiro de 2012. Lá, falou à TV local, e disse que os haitianos que quisessem emigrar para o Brasil poderiam tentar um visto permanente na embaixada. Apesar da sua fala, a embaixada brasileira tinha autorização de conceder apenas 100 vistos mensais (fonte). Por isso, milhares de haitianos recorreram aos coiotes, criminosos que predam miseráveis para levá-los a outros países… ou para vendê-los como escravos, conforme a ocasião.

Bem ou mal, muitos haitianos começaram a vir para o Brasil, em busca de uma nova vida. 2012 e os anos seguintes ainda eram a época da bonança para as empreiteiras brasileiras e os seus contratos governamentais multibilionários, e mão-de-obra não especializada – quase escrava – sempre era útil. A bonança logo começou a definhar, justamente quando o fluxo migratório aumentava.

Para piorar, foi mais uma promessa vã de Dilma Rousseff. Os imigrantes haitianos se confiavam aos coiotes; se tivessem a sorte de chegar ao Brasil, encontravam nossa famosa burocracia e nosso adorável cipoal de leis, todos agindo para impedir que sua situação fosse facilmente registrada. Nada havia sido feito para receber um fluxo migratório significativo. Muitos dos imigrantes chegavam pelas fronteiras terrestres do norte do Brasil, onde já há pouca infraestrutura para começar. (Incidentalmente, a mesma situação desastrosa voltou a acontecer anos mais tarde, com o fluxo migratório venezuelano.)

Centenas, depois milhares de pessoas, chegando ao Brasil, sem dinheiro, sem documentos, apenas com a roupa do corpo. Seguiram-se debates de alto nível, entre nossos grandes especialistas em fluxos migratórios, e que podem ser resumidos como uma sucessão de frases “não tenho nada com isso, resolve você”.

Uma das poucas medidas adotadas foi a de distribuir o problema. Os estados do Norte exportaram a maior parte dos haitianos para os demais estados, que tinham o mesmo grau de preparação para receber aqueles imigrantes. Pude acompanhar o que aconteceu com eles em Curitiba.

Haitianos em Curitiba

Como acontece com muitos migrantes, um dos problemas enfrentados pelos haitianos em seu novo país era a barreira da língua.

A língua materna dos haitianos é o crioulo haitiano (ou kreyòl), que tem origem no francês do século XVIII, algumas outras línguas europeias, e várias línguas africanas. Alguns poucos haitianos conhecem francês, frequentemente em nível semelhante ao dos brasileiros que estudaram inglês nos cursos fundamental e médio – ou seja, quase nada.

Ainda que fossem todos fluentes falantes de francês, é claro que isso não faria diferença no Brasil. Portanto, esta era a primeira barreira que os imigrantes haitianos tinham que vencer.

Em Curitiba, a paróquia de São José e Santa Felicidade abriga a Pastoral do Migrante. Com a chegada dos haitianos, e enfrentando o problema da comunicação, um dos padres foi à Universidade Federal do Paraná para pedir ajuda aos professores do curso de Letras.

Ele teve a santa felicidade de encontrar o prof. João Arthur Grahl, da área de língua francesa. João Arthur é um excelente professor – posso afirmá-lo por experiência pessoal – e é um homem de grande sensibilidade, com um coração enorme. Ele abraçou a causa e foi em busca de quem pudesse ajudar.

Alguns professores e alunos da UFPR se prontificaram a ajudar. Vários eram do curso de Letras, alguns vinham de outros cursos, e houve a ajuda inestimável de um professor do Direito, que mobilizou meios para regularizar os documentos dos imigrantes.

Este foi o início, ainda informal, do que mais tarde foi formalizado como o PBMIH (Português Brasileiro para Migração Humanitária). Testemunhei pessoalmente as atividades destes voluntários, que desempenharam um papel fundamental para o acolhimento destes imigrantes em nosso país… destes novos brasileiros.

Novos brasileiros

Os haitianos ainda são recém-chegados ao Brasil. Para o migrante, é sempre doloroso sair de sua pátria e ir para outro país, muitas vezes em definitivo. Aqui em Curitiba, vi imigrantes que tinham formação universitária aceitando trabalhos braçais, vi o choque cultural, vi o racismo…

… e vi muitas pessoas recebendo estes imigrantes com os braços abertos, oferecendo-lhes empregos, ajudando como podiam a reduzir o choque e a tensão inerentes à vida do imigrante, mesmo o mais bem preparado.

O imigrante que tão bem se dirigiu a Bolsonaro é um dentre esta multidão que veio para o Brasil apenas com esperança. Ele provavelmente não é eleitor no Brasil – mas ele sabe bem o que lhe custou vir para cá, e sabe bem que não quer ver no Brasil os mesmos desastres que vitimam sua pátria natal há mais de dois séculos.

Palavras-chave

LC, o Quartelmestre

Também conhecido como Luiz Cláudio Silveira Duarte. Escritor, poeta, pesquisador, jogador, polímata, filômata... está bom para começar.