Terra plana, conhecimento e adubo
Nas universidades, há professores que são frequentemente chamados a ministrar as disciplinas introdutórias de seus cursos. Todos os anos, ou todos os semestres, precisam ensinar as mesmas lições fundamentais aos novos calouros. Matemática não é fazer contas. Letras não têm som. A História não é uma sequência de datas.
Sim, sempre as mesmas lições. Especialmente para professores, assim como para bons profissionais destas áreas, são conceitos básicos, verdadeiros pressupostos e alicerces do que será construído no curso e no exercício daquela profissão. Não é de surpreender que, muitas vezes, os experientes fiquem surpresos com a ignorância destes conceitos. Como é possível que não saibam isso?
Pensei nisso, ao ver mais um meme terraplanista. Não faz diferença se é fruto de real convicção terraplanista, ou se é mais uma das desinformações propiciadas pela Era da Informação. Lembrei-me de como os gregos, quatro séculos antes de Cristo, já haviam deduzido a forma redonda da Terra, a partir de evidências empíricas. Revigorei o choque, que tantas pessoas já manifestaram: como é possível que, em pleno século XXI, ainda haja quem acredite que a Terra é plana, ou que vacinas não funcionam?
Desta vez, dei-me conta de um erro fundamental neste raciocínio. É incorreto dizer que “os gregos sabiam que a terra era redonda”. Alguns gregos sabiam disso. Para a imensa maioria da população, a questão sequer era discutida. E este erro não acontece à toa: decorre de uma das limitações fundamentais do estudo da História.
Nós vemos o passado por uma lente distorcida. Muito do que sabemos sobre o passado vem de textos escritos por um grupo extremamente reduzido de pessoas: alfabetizadas, decerto, mas especialmente com tempo livre para escreverem. Mesmo em nossa sociedade, este é um luxo dos mais raros.
Para cada filósofo discorrendo sobre a esfericidade da Terra, havia milhares de pessoas que não pensavam no assunto, ou – se pensassem – chegavam a conclusões distintas, ou mesmo que concordavam com os filósofos. Mas estes pensamentos não foram registrados em documentos que tenham chegado até nós.
Poderíamos dizer: os gregos conheciam a escrita. Mas qual era a taxa de alfabetização em Atenas? Qual era a taxa de alfabetização em Atenas, contando toda a sua população – homens e mulheres livres, estrangeiros, escravos? Provavelmente baixa… e o número de anos que nos separa de Platão era menor que o número de anos entre ele e o desenvolvimento da escrita.
Mesmo hoje, quantos ainda são analfabetos – e quantos são analfabetos funcionais?
Ao fim e ao cabo, deter conhecimento é um privilégio, e transmiti-lo é uma necessidade perene. Como os professores de disciplinas introdutórias já sabem, sim, temos que todos os anos repetir as lições. Da mesma forma que, todos os anos, os fazendeiros lavram o solo, espargem o adubo, plantam as sementes, e colhem o que plantaram. Pode ser tedioso, pode até desesperar pela repetição. Mas, se não fizermos isso neste ano, no ano que vem passaremos fome.