Ecologia dos jogos
Lembro de ter lido, há muito tempo, que a história da filosofia ocidental é muito simples: os gregos falaram de toda a filosofia, e desde então tudo que os filósofos fazem é retomar os mesmos assuntos.
Pena que não lembro quem foi o autor da brincadeira; e nunca mergulhei no estudo da filosofia. Mas tenho me espantado, durante a minha pesquisa, em perceber, nos jogos, características que retomam ideias defendidas por filósofos gregos.
Uma das mais relevantes é a ideia de dinamismo e de eterna mudança, proposta por Heráclito, e consubstanciada na frase “ninguém consegue entrar duas vezes no mesmo rio”. Eu a adaptei para minha pesquisa: ninguém consegue jogar duas vezes o mesmo jogo. O ato de jogar muda o jogador, no mínimo por aprender mais sobre aquele aquele jogo.
Outra frase, esta de Protágoras, também sempre mantenho em mente: “O homem é a medida de todas as coisas”. Para minha pesquisa, tenho uma leitura provavelmente simplista desta frase: as réguas que usamos para medir o mundo têm o tamanho apropriado a nós. É por isso, por exemplo, que temos dificuldade em entender fenómenos muito grandes ou muito pequenos, mesmo quando nossos instrumentos e teorias os alcançam. Perceber fenómenos fora da nossa escala é mais difícil.
É preciso lembrar que uma das dimensões da nossa escala é temporal – e a mesma dificuldade se materializa nela. Temos dificuldade para imaginar o futuro, e temos uma tendência a agrupar todo o passado em uma massa quase informe. Vivemos muito no agora.
Isto é importante quando pensamos em sistemas. Um sistema estático é quase um contrassenso: de forma geral, sistemas são dinâmicos, e isso quer dizer que o seu comportamento muda ao longo do tempo. Mas, porque temos a tendência a perceber apenas o agora, temos dificuldade em perceber mudanças sistémicas que não sejam imediatas. Temos facilidade em perceber os elementos do sistema, bem como os seus limites; perceber as relações entre os elementos é mais difícil.
Um exemplo típico é o da ecologia, a ciência das relações entre os seres vivos e o seu ambiente. Podemos identificar, com alguma facilidade, os elementos de um ecossistema – por exemplo, em um bosque, identificamos as árvores, os pássaros, os insetos, a vegetação rasteira, alguns mamíferos, a luz do sol, o solo, a água corrente, e assim por diante. Mas ver uma fotografia de um ecossistema é insuficiente. Precisamos perceber as relações entre os elementos do sistema.
Algumas destas relações são imediatas, como um pássaro que surpreende e come um inseto; estas são fáceis de perceber. Outras prolongam-se no tempo: por exemplo, um pesticida da fazenda vizinha causa esterilidade nas abelhas do bosque, o que em alguns anos leva ao desaparecimento de algumas espécies vegetais naquele bosque.
Perceber as relações não-imediatas é bem mais difícil. Este é um dos problemas da ecologia: há muitas pessoas que simplesmente se recusam a acreditar em seus resultados. “Que bobagem, dizer que usar este defensivo na minha plantação vai matar plantas na área de preservação. Ele justamente protege as plantas dos insetos!”
Vamos, agora, trazer isso para o campo dos jogos. Jogos também podem ser abordados pela perspetiva dos sistemas: há os elementos (componentes do jogo e jogadores), há o limite (o tabuleiro, ou a área de jogo), e há as relações – especialmente as regras do jogo. São as regras que dizem o que os jogadores podem fazer dentro do sistema, e também dizem quais são as consequências de suas ações,
Assim como acontece nos ecossistemas, há algumas relações que não são imediatamente percetíveis. Já ouvi dizer que os grandes mestres de Go conseguem ver o tabuleiro de uma partida, após algumas jogadas, e estimar com grande acerto qual dos dois jogadores vai vencer. Seja isso verdade ou não, o inverso é que, para a gigantesca maioria das pessoas, ver um tabuleiro de Go após algumas jogadas não oferece pistas para estimar o vencedor. As relações estão ali, mas não as vemos.
Uma consequência importante desta dificuldade em perceber relações e seus efeitos tem nome próprio. No estudo de sistemas, chamamos de dinâmicas emergentes aos comportamentos que não podem ser facilmente identificados no sistema, apenas a partir do exame dos seus elementos, e do conhecimento do estado e das relações iniciais do sistema.
É importante notar que, ao tratar da emergência, falamos de dinâmicas – de comportamentos ao longo do tempo. Assim como nos ecossistemas, parte da nossa dificuldade em identificar estes resultados decorre, justamente, da nossa dificuldade com a escala temporal, a que aludi acima.
Atualmente, o foco da minha pesquisa está nas regras dos jogos. Como as relações entre os elementos de um jogo são definidas e mediadas por regras, esta pesquisa é, por natureza, um estudo das relações entre os elementos do sistema jogo. Pesquiso, então, a ecologia dos jogos.