Gato
Conto.
Nenhum de nós, que nasce de fêmea, nasce sozinho. Mesmo quando não temos irmãos de ninhada, nossa mãe está lá, primeiro nos envolvendo, depois nos aleitando, nos lambendo, nos abrindo os olhos para o mundo.
Eu tinha dois irmãos de ninhada. Nossa mãe era pequena, mas tinha leite para os três filhotes. Era o alto de uma habitação de humanos. Nós os ouvíamos sob o chão, mas eram apenas mais coisas que descobríamos. Somente mais tarde aprendi mais sobre eles. Ali, onde nascemos, encontrávamos presas, para brincar e para caçar.
Depois, aprendemos os caminhos que nossa mãe usava para ir a outros lugares do mundo. Aprendemos o que era noite e o que era dia, aprendemos a reconhecer e a entender outros felinos, e outras espécies.
Cada um de nós procurou seu próprio caminho. Nossa mãe nos viu partir. Lembro de seus olhos brilhando na noite, me acompanhando, até que não olhei mais para trás.
Agora eu estava sozinho.
Sozinho andei e corri; sozinho lutei e cacei. Sozinho amei, pois elas também estavam sozinhas.
Sozinho aprendi.
Aprendi a aproveitar as sobras dos humanos, e aprendi a evitá-los. Aprendi a fugir das suas máquinas que corriam pelas ruas negras. Eu era ágil e rápido.
Mas não o bastante.
A máquina me atingiu quando eu corria pela rua, indo para o outro lado. Não senti dor. Mas senti um grande impacto, e senti que minhas patas ágeis já não respondiam. Eu estava na rua negra, sem conseguir me mexer.
Sozinho.
À espera de outra máquina.
Nunca estamos sozinhos ao nascer, nós que nascemos de fêmeas. Mas a morte é egoísta.
Desde que deixei os olhos brilhantes de minha mãe para trás, meu caminho era solitário. Meu novo caminho também seria.
Uma máquina parou perto de mim. Uma humana desceu dela, gesticulando. Outras máquinas pararam.
A humana correu para mim, e amparou minha cabeça em um carinho de cuidado. Vi sua tristeza e seu pranto.
Assim como minha mãe me acompanhou em minha chegada, esta humana me acompanhou em minha saída.
Aprendi, mas já não estava sozinho. Juntos, ela me mostrou o meu novo caminho.
Obrigado.
Pós-escrito
Esta história me acompanha há muitos anos. Um dia, Adelaide chegou a nossa casa transtornada. Ela havia visto um gatinho atropelado, largado na rua. Parou o carro, bloqueando o trânsito, e correu para socorrê-lo. Ela amparou a cabecinha dele, e ele morreu naquele momento. Ela o colocou na calçada, voltou para o carro e voltou para casa.
Estava desesperada, por não ter conseguido salvar o gatinho. Eu lhe disse que ela tinha dado a ele a melhor coisa que qualquer pessoa pode desejar: uma mão amiga a acompanhá-la no momento da morte. Não sei se isso a consolou; acho que não, acho que foi mais uma das muitas vezes que não consegui alcançá-la e apoiá-la.
Mas a história me marcou muito. Tempos depois disso, perguntei a Thalia se ela gostaria de fazer uma história em quadrinhos com este argumento. Infelizmente a ideia não foi adiante. Hoje, vi uma cena em um filme que mostrava exatamente isso, o gesto tão profundo, tão importante, de segurar a mão de uma pessoa à beira da morte, de dizer a ela “você não está sozinha”.
Brasília, 11 de março de 2021