Julgando o passado
Ontem, eu procurava uma citação de Carl Sagan, para passá-la ao meu querido amigo e confrade Adriano. Enquanto a procurava, encontrei vários textos deste grande cientista e humanista, nos quais ele expressava sua preocupação com a nossa marcha coletiva para a destruição da espécie. Nos textos, ele mencionava problemas de ecologia e de degradação da atmosfera, mas de longe sua maior preocupação era com a perspectiva de uma guerra nuclear devastadora.
Outros tempos… Era um medo bem real, e não apenas de cientistas ou estadistas. Lembro de muitas conversas com meus amigos, nas quais este temor aparecia.
Foi um pouco desconcertante ler as preocupações com um risco que hoje já não é tão urgente – em que pese a tensão do início da guerra na Ucrânia --, especialmente à luz da quase certeza de termos atingido o ponto sem retorno no processo de aquecimento global, e em vários outros dos efeitos atropogênicos sobre o ambiente. Mas a minha familiaridade com a preocupação do passado me permitiu notar a minha reação, e terminei por achar graça nela.
Hoje cedo, eu lia uma das matérias de sábado do Meio, esta assinada por Giullia Chechia, e na qual fazia uma análise do impacto da obra cinematográfica de Jean-Luc Godard. Para isso, entrevistou três pesquisadores brasileiros. Guilherme Bryan, de São Paulo, referiu-se às técnicas de Godard e seus colegas como “revolucionárias”. Pouco entendo de cinema, menos ainda da Nouvelle Vague, mas sei de seu impacto, e sua colocação não me surpreendeu.
Pouco adiante, outro pesquisador foi citado: Luiz Nazario, de Belo Horizonte.
“Se você prestar bastante atenção nesses filmes ditos ‘revolucionários’, sempre coloco entre aspas, sempre são retratadas histórias de um homem e uma mulher, casais heterossexuais. São sempre histórias de amor… um casal rompendo, enfrentando crises“, diz Nazario, da UFMG. ”No fundo, são filmes revolucionários no sentido de romper com o que estava posto, mas que escondem um núcleo muito burguês”.
Aceito o risco de julgar a manifestação do prof. Nazario apenas pelo que li na matéria – e discordo inteiramente de sua posição, bem como do pressuposto que a embasa. Essencialmente, ele julga que os cineastas franceses de setenta anos atrás não podem ser chamados de revolucionários, porque não abordaram os temas que hoje são temas revolucionários. Isso é profundamente insensato!
Este ponto de vista não é exclusividade do prof. Nazario; ele embasa muitas avaliações contemporâneas de fenômenos e decisões históricas. Quem o usa entende que os atores do passado tinham a obrigação de pautar suas decisões com base em informações e considerações morais que temos hoje, mas que eles não tinham.
A injustiça e a insensatez ficam patentes com um pequeno exercício mental. Digamos que este ponto de vista seja válido, e que possamos julgar – e condenar! – o passado, à luz das informações e da moralidade contemporâneas. Muito bem: então todos nós, mesmo os mais revolucionários, os mais engajados com as causas sociais e morais do momento, estamos inteiramente errados e devemos ser condenados moralmente, porque não estamos atendendo às causas e morais do próximo século. Nós nem temos ideia de quais serão, mas não importa – é obrigação nossa nos pautarmos por elas!
Lamento. Tenho cá minhas bizarrices e loucuras, mas este tipo de insensatez é demais para mim.