Segundo turno
Amanhã será o segundo turno das eleições para presidente. Votei em Lula no primeiro turno, votarei nele amanhã. Antes disso, votei em Lula uma única vez: contra Collor, em 1989. Na ocasião, eu achava os dois muito ruins, mas eu via problemas muito maiores no coronel travestido em “caçador de marajás”.
Lembro que, dias depois do terrível Plano Collor, com o confisco da poupança, Lula falou “se nós fizéssemos algo assim, no dia seguinte tinha tanques na rua.” Ele certamente tinha razão, pois uma das promessas não cumpridas pelas democracias é a de que a mesma lei vale para todos. Não é verdade; e isso ficou tristemente evidente há poucos dias, quando um criminoso cumprindo pena entendeu ser seu direito resistir a bala a uma nova condenação, e a própria polícia demonstrou concordar com ele. Era um político, rico, branco; bastava que qualquer destes três atributos fosse invertido, para que o cadáver crivado de balas sobre o asfalto fosse o seu, e não o da nossa República.
Seria fácil eu anular o voto, ou deixar de votar. Confesso que, depois da última eleição, fiquei tentado a anular meu voto em votações futuras.
Mas não o faço. Não abdico de meu direito, e nem lavo as mãos, entregando a outros a decisão. Voto, ainda que contrariado; voto, ainda que desesperado.
Mais uma vez, voto em Lula como o mal menor – desta vez, escancaradamente, flagrantemente menor.
Mas também um mal. Nem tanto pela corrupção, embora ela seja muito grave. Foi seguidamente usada por seu governo de forma tão agressiva, tão corriqueira, tão institucionalizada, que se tornou aceitável e esperada, por políticos e por seus eleitores – e é fácil esquecer que, há menos de trinta anos, não havia esta percepção generalizada sobre os políticos.
O mal maior foi a polarização, adotada conscientemente e enfaticamente, pelo presidente da República até o mais humilde dos seus apoiadores. Passamos a ser “petistas” ou “antipetistas”. Lula proclamou insistentemente que recebera uma “herança maldita”, que nunca individualizou ou especificou. Ele e os seus eram O BEM, todos os demais – especialmente seus antecessores – eram O MAL.
Mesmo que ele vença amanhã, terá um mandato difícil, com sérias forças contrárias no Congresso e uma situação muito diferente da bonança maldita de seus dois mandatos anteriores. Isso é fácil prever.
O que não é fácil prever é se, como fazem há quarenta anos, os “petistas” vão se colocar de um lado de uma cerca, e tratar todos os demais como “outros” – como “malditos”. Esta postura foi uma das forças que nos trouxe a este desastre; será que vai ajudar a transformá-lo em catástrofe?
Eu falei, acima, que uma das promessas não cumpridas da democracia é ter as mesmas regras para todos. Cumprir esta promessa depende de um pressuposto, de um fundamento mesmo: todos temos que fazer, juntos, estas regras funcionarem. Quem parte da alteridade, quem coloca uma cerca entre “os seus” e “os outros”, não tem como convencer quem está do outro lado a jogar com as mesmas regras.