Mães, ciência e inclusão
Reflexões sobre os votos pelo dia das mães.
Dia das mães, dia de infindáveis votos de alegria, de felicitações, de louvor às mães. Mas, hoje, esta data tão simpática me provocou uma reflexão. Como sou eu, nenhuma surpresa que ela parta do estudo dos jogos…
Para a maior parte dos cientistas, jogos são algo bem fora da caixinha. Assim, uma das consequências de estudar jogos é que eu me sinto muito à vontade fora da caixinha.
Mas você sabe o que é esta “caixinha”? São ideias e conceitos que usamos como ferramentas para entender o mundo, para lidar com ele. Quase sempre, estas caixinhas levam rótulos — palavras ou expressões que usamos para representar nossas ideias. Por exemplo, “jogo”. Ou “amor”. Ou “mãe”.
Usar caixinhas — categorias! — e seus rótulos traz dois desafios. O primeiro é que o que eu entendo por “jogo”, “amor” ou “mãe” pode não ser exatamente o que você entende. Como continuamos a ser organismos sociais, com sociedades mediadas justamente por palavras — pelos rótulos que usamos —, já de saída temos um desafio de comunicação. Lidar com este desafio causa problemas, mas também oferece oportunidades fantásticas.
O segundo desafio é mais pessoal. Quando adoto uma categoria, sempre há fenômenos que se encaixam perfeitamente na minha ideia sobre aquela categoria, assim como há outros que muito claramente estão completamente fora dela. Prático. Confortável. O problema é que há uma zona cinza nos limites da minha categoria… uma zona na qual alguns fenômenos causam dúvida: estão dentro ou fora da categoria?
Por exemplo, na área de Ludologia, há um modelo conceitual sobre “jogo” muito usado. É o modelo padrão de jogos, criado por Jesper Juul. Este pesquisador definiu as características que um fenômeno precisa atender para ser um jogo; fenômenos que não atendem todas as características, portanto, não são jogos.
O problema é que jogos são fenômenos extremamente mutáveis, com uma enorme variedade e plasticidade… e a zona cinza do modelo padrão é enorme, deixa muitos deles fora da caixinha. É o caso dos RPGs, por exemplo.
É um problema? É. Mas também é uma oportunidade — porque muitas criações e descobertas da ciência ocorrem exatamente nas zonas cinza das categorias. Afinal, o que claramente está dentro da categoria já está “compreendido”, assim como o que claramente está fora dela; mas o que está ali, no limite, quase dentro e quase fora, desafia a compreensão e convida à investigação.
Vejamos o rótulo e a caixinha que comemoramos hoje. “Mãe”. Parece simples e direto. Nossos votos, memes e cartões celebram o amor das mães por seus filhos. Há cumprimentos e agradecimentos, há felicitações e beijos. Em alguns casos, este é o dia do ano no qual as mães são convidadas a ir almoçar fora; em outros, este é o dia no qual ela é instada a preparar um almoço, como faz todos os outros dias do ano, mas desta vez com mais pompa e com mais trabalho, já que é o seu dia.
Mas, em todos estes exemplos acima, as mães estão bem dentro da caixinha “Mãe”. Uma caixinha tão brilhante que nos ofusca, que seduz a mente, e nos faz pensar que todas as mães cabem dentro da caixinha comemorada em memes e cartões.
Ah! Como toda caixinha, ela tem uma zona cinza. O que encontramos nela?
Encontramos pessoas — de qualquer gênero! — que desempenham o papel que atribuímos às mães-da-caixinha, sem que o sejam. Encontramos mulheres que não queriam ter filhos, mas foram forçadas a isso por violência ou por necessidade. Encontramos mulheres que tiveram filhos, mas não os amam. Ou que os perderam, e desconhecem o seu paradeiro.
E mais. Muito mais. A variedade da experiência humana é ilimitada — e este é um dos nossos desafios comuns.
Eu mencionei, acima, que as nossas caixinhas criam um desafio interpessoal e um desafio pessoal. Mas elas também criam um desafio social.
Enxergar as pessoas que estão nas zonas cinza, entendê-las e acolhê-las — isso é o que chamamos inclusão.
A ciência avança quando explora as áreas cinza das suas categorias conceituais; a sociedade avança quando explora as áreas cinza das suas categorias sociais.
Então, sim, agradeço e felicito todas as mães hoje, com muita humildade e alegria; mas quero sempre lembrar que eu ainda tenho muito que aprender e entender sobre elas, sobre tantas pessoas à minha volta, em zonas cinza que desafiam o meu olhar.