Erros e mentiras
Analisando o poder do Anel de Sauron.
Lendo The Lord of the Rings, sabemos muito pouco sobre a Treva. Quando a vemos, nosso ponto de vista é sempre o dos protagonistas da história. Não se encontra nos livros, por exemplo, uma cena como a do filme The Two Towers (2002), na qual Saruman se comunica com Sauron usando o palantír de Orthanc. Nos livros, esta comunicação é inferida pelos protagonistas, mas nunca mostrada. Raras vezes sabemos o que pensam os antagonistas – como o medo de Shelob, ao ser atacada por Sam em Cirith Ungol.
A Treva é um enigma – tanto para os protagonistas, quanto para nós, leitores. Nosso conhecimento escasso se torna especialmente relevante para avaliarmos o objeto central da trama: o Anel Um.
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O que sabemos sobre ele? Nas mãos de Sauron, ele mostra ser um artefato poderoso. Com ele, Sauron foi capaz de influenciar os portadores de outros anéis. Quando deixou seu dedo, muitas de suas obras ruíram.
É importante notar que, mesmo com o Anel, Sauron não foi capaz de controlar nem Elfos nem Anões; por outro lado, seu controle sobre os Nove persistiu, mesmo depois que ele o perdeu. Isso permite supor que não havia, aqui, propriamente controle. Quando Sauron pela primeira vez colocou o Um em seu dedo, os elfos o perceberam, e tiraram seus anéis; claramente, há aqui uma via de mão dupla, ainda que sejam vias desiguais. Mas é perfeitamente lícito supor que Sauron tenha entregue os Nove a homens que ele já sabia serem suscetíveis a sua influência, com ou sem os anéis. Por sua vez, Tolkien sempre considerava que as pessoas são responsáveis por seus atos, nunca são “obrigadas” por outras – muito menos por artefatos!
O poder de invisibilidade é outro poder conhecido. Ou melhor, não exatamente invisibilidade: quem usa o Anel passa para um mundo espiritual, um “outro lado”, que coexiste com o nosso, mas que normalmente não é visto. Alguns seres têm manifestações em ambos os mundos – os Nazgûl, Glorfindel, provavelmente Gandalf o Branco.
Também sabemos que o Anel exerce uma influência maligna sobre as pessoas à sua volta, tentando provocá-las a decidirem agir conforme seus lados mais perversos: Isildur, quando o conquistou; Boromir, em Amon Hen; Frodo, em Orodruin; e, especialmente, Gollum, desde que o encontrou. Galadriel foi igualmente tentada, mas recusou a tentação.
O caso de Gollum mostra claramente que o Anel influencia, mas não controla: os planos de Gollum eram francamente contrários aos desejos de Sauron – tanto é que o Anel decidiu abandoná-lo, logo antes de ser encontrado por Bilbo.
Mas uma das capacidades do Anel não é apresentada diretamente; e pode ser que mesmo um dos Sábios, como Gandalf, tenha uma ideia equivocada a seu respeito. Ele diz que o Um é um multiplicador de poder, e que quem o porta ganha poder na medida que já o tenha. Nós vemos que, ao influenciar Boromir, o Anel o tenta com visões de comando e glória; já Samwise é tentado com visões de tornar-se um grande jardineiro.
Tolkien também menciona o medo de Sauron, ao supor que Aragorn tomou o Anel. Mas há um ponto importante aqui: temos essencialmente uma suposição de Gandalf, afirmando que este medo existe, e que este medo forçou a mão de Sauron, precipitando o ataque contra Gondor.
Bem… parece que Gandalf pode ter se enganado a respeito disso. O ataque contra Gondor não teve nada de apressado, ou improvisado (ao contrário do ataque de Saruman contra Rohan). Foi um ataque bem coordenado, com forças que já estavam em preparação e em movimentação há meses, e realizado em várias frentes simultaneamente – e ainda com ataques a outras forças dos Povos Livres, em Lórien e na Montanha Solitária, que cumpriram seus objetivos estratégicos.
Por outro lado, quando Aragorn marchou contra Mordor, em nenhum momento Sauron demonstrou temer que seu inimigo conseguisse usar o Anel contra ele. Mandou seu emissário provocar dissenso, medo e desespero, e depois disso mandou suas forças atacarem, sob as asas dos Nazgûl remanescentes – sem jamais demonstrar medo, ou preocupação, que Aragorn pudesse usar o Um com qualquer efeito.
Tudo isso me leva a acreditar que Gandalf também se enganou a respeito de o Anel multiplicar o poder de seu portador. Mesmo ele havia dito que há apenas um Senhor dos Anéis. Parece que apenas Sauron poderia, de fato, usar o poder do Anel; qualquer outro que o usasse estaria acreditando nas mentiras do próprio Anel, quando na verdade estaria apenas chamando para si a atenção do Olho de Barad-Dûr.
Somente quando Frodo clama para si o Anel, em Orodruin, é que vemos o medo de Sauron: as forças na batalha são tomadas pelo mesmo medo e desespero de seu mestre, bem antes de o Anel ser destruído. Mas qual seria este medo? Certamente não o de ser suplantado por um hobbit – em Amon Sûl, usar o Anel não havia impedido os Nazgûl de atacarem Frodo, e até facilitou o ataque.
Provavelmente o medo de Sauron era que acontecesse exatamente o que aconteceu: o Anel estava no único lugar, em toda a Terra Média, onde podia ser destruído, intencionalmente ou acidentalmente.
Ao fim e ao cabo, parece que ninguém mais, além de Sauron, poderia usar o poder do Um. O próprio Anel mentia constantemente para quem o portava, e para os que estivessem à sua volta, sugerindo falsamente que teriam um grande poder. Entre os Sábios, talvez apenas Saruman soubesse disso – mas, certamente, não teria interesse em difundir esta informação, e ele pode mesmo ter contribuído para espalhar desinformação entre seus colegas.
Ao longo da narrativa, vemos Gandalf cometer alguns poucos erros; mas parece que ele mesmo não se deu conta de que a sua análise de Sauron também estava equivocada.
O domínio que Sauron buscava não era apenas o das armas, mas principalmente o das almas. Erros e mentiras: duas das grandes forças da Treva.
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