A lei, ora, a lei...
Uma das marcas da segunda administração Trump é o recurso frequente a “neat tricks” jurídicos. A expressão geralmente corresponde a algo como “truques bem bolados”, mas penso que, neste caso, “truques sujos” é mais apropriado.
De forma geral, um truque sujo jurídico procura se fundamentar em uma única forma de ler uma norma, ao mesmo tempo que rejeita inteiramente qualquer outro tipo de consideração sobre a norma – especialmente qualquer consideração sobre a finalidade da norma.
Um exemplo. Nos últimos anos, vem acontecendo um movimento de mudar nomes de instalações públicas que homenageiam “heróis” do Sul escravista, durante a Guerra Civil americana. Assim, em 2023, a sede das forças especiais do exército americano deixou de se chamar Fort Bragg e passou a se chamar Fort Liberty. O primeiro nome era uma homenagem ao general Braxton Bragg, do exército confederado. A mudança aconteceu por força de lei federal, que agora proíbe homenagens a oficiais confederados. Como isso desagradou os radicais saudosistas da escravidão, apoiadores de Trump, o novo governo mandou que o nome fosse mudado para Fort Bragg. Mas atenção: não é o mesmo nome! Antes era o general Bragg do exército confederado; agora é o soldado Roland Bragg, que serviu no exército americano durante a 2a Guerra. A lei foi cumprida! Isso retira qualquer efeito prático da lei, mas ela foi cumprida!
O mesmo tipo de espírito trapaceiro inspira muitas das ações diretas de Trump. Ele vem usando sistematicamente uma lei de 1798, o Alien Enemies Act, como fundamento jurídico para deportar qualquer pessoa. Aquela lei foi criada para autorizar o governo federal a agir contra uma invasão do território americano, em situações nas quais não houvesse uma declaração formal de guerra. Mas, como a lei não define o que seja uma invasão, o truque sujo da vez foi Trump baixar um decreto dizendo que a presença de imigrantes ilegais é uma invasão, então ele pode fazer o que quiser com eles. Outra lei, esta da década de 1970, autoriza o presidente a impor tarifas extraordinárias, nas situações de emergência que especifica; Trump, então, por decreto declarou que a situação econômica dos EUA está em situação de emergência, logo ele pode impor tarifas a seu bel-prazer.
Há uma intenção escancarada de criar fatos consumados, forjando deliberadamente uma “slippery slope”, pegando embalo em uma ladeira cada vez mais escorregadia e íngreme, e que leva a um precipício onde desaparece o Estado de Direito e resta apenas o exercício irrestrito do Poder.
Parte da reação a isso vem, justamente, dos órgãos do Estado a quem compete zelar pelas normas – tipicamente, os juízes do Judiciário e os promotores do Executivo. Uma complicação grave para a reação é o aparelhamento do Judiciário federal, especialmente na Suprema Corte, que incansavelmente lubrifica a ladeira. Além disso, Trump nomeou para a chefia dos órgãos judiciais do Executivo pessoas que, declarada e explicitamente, estão lá para cumprir a sua vontade, e não a lei.
Por força de lei, os ocupantes de cargos de chefia no Executivo têm que ser aprovados pelo Senado. Claro que, para os cargos mais importantes, Trump exerce seu poder de pressão para conseguir a aprovação mesmo de pessoas manifestamente inapropriadas a seus cargos. Mas fazer isso para os milhares de outros cargos do Executivo seria estúpido, mesmo para seus padrões.
Não tem problema. Também aqui há um truque sujo a socorrer as necessidades de um tirano.
Os EUA são divididos em algumas dezenas de distritos federais; em cada um deles há um Attorney General, um Procurador-Chefe, responsável por chefiar as atividades jurídicas do Executivo no seu distrito. Especialmente, quem processar e quem não processar. Os AGs precisam ser confirmados pelo Senado. O presidente pode nomear um AG interino, que pode exercer a função por no máximo seis meses. Assim, Trump nomeou um amiguinho seu para ser o AG interino em um distrito de New York. Como seu mandato acabava na semana passada, o amiguinho ganhou nova nomeação, desta vez como assistente do AG – ou seja, assistente de si mesmo. Seu mandato de AG interino acabou, sem que um AG permanente fosse nomeado; mas tudo bem, na ausência de um AG o assistente responde provisoriamente pela função – e a lei não estabelece limite de tempo…
As lei estão sendo cumpridas. Mesmo assim, todos os exemplos acima são transgressões. Em todos eles, as finalidades das normas foram violadas. Em todos eles, as próprias normas são usadas como ferramenta para justificar a transgressão a elas.
Nem sempre da mesma maneira, é claro. No caso das leis tarifárias e de deportação, a leitura é a mais ampla possível – não apenas no sentido de considerar qualquer situação como válida para as condições de seu exercício, mas especialmente nas consequências de seu uso.
Já no caso da norma sobre as homenagens ao passado escravista dos EUA, ou no da norma sobre interinos, usa-se a leitura mais estreitamente reducionista possível da parte limitante da norma, ao mesmo tempo que a parte não-limitante é, novamente, ampliada de forma exacerbada.
Quis custodiet ipsos custodes? Quem guarda as leis, quando os seus guardiões as usam contra elas mesmas?