Bons jogos
A memória de muitos jogos comprados à loja Fine Games.
Há 24 anos, minha situação era bem diferente da atual. Eu ainda estava em plena atividade no Senado; embora já estivesse tomando medicamentos psiquiátricos, ainda não havia indicação da gravidade do meu quadro. Lilah tinha apenas um ano de idade, e também não dava qualquer indício de que tinha características neurodivergentes. Meu primeiro casamento estava muito bem.
Morávamos em uma casa alugada na QI 25 do Lago Sul. Mas as perspectivas eram boas; de fato, alguns anos depois, Lidia e eu fizemos aquela que seria a casa onde criaríamos nossas filhas e envelheceríamos juntos. Ou assim eu imaginava.
Era uma época em que o meu salário era substancial, e nossa moeda era valorizada.
Neste ano de 2000, fiz uma compra de alguns wargames em uma loja dos EUA. A Fine Games era especializada em jogos usados e fora de catálogo. Consegui encontrar algumas preciosidades lá.
Ao longo dos anos, voltei a comprar jogos lá, várias vezes. Nos últimos dois anos, Michael Dean, o proprietário da loja, decidiu se aposentar, e está aos poucos liquidando o inventário. Hoje recebi o aviso do que pode ser a última venda. Aproveitei e comprei dois jogos pequenos, por um excelente preço.
Eu na verdade não tinha memória da data que mencionei no início deste texto. Mas, ao confirmar a compra, Michael acrescentou um agradecimento: “Muito obrigado por todos os seus 17 pedidos, desde 2000.”
Não fui atrás dos meus registros para saber que jogos comprei dele nestes 24 anos. Foram muitos, provavelmente um pouco menos de cem. Todos acabaram vendidos. Lembro de ter comprado uns dois ou três títulos mais de uma vez, sempre achando que finalmente minha situação financeira tinha se estabilizado, para algum tempo depois acabar por vendê-los novamente. Sei que sempre tive prejuízo quando vendi os jogos que comprei dele.
Quando meu primeiro casamento acabou, e saí da casa na qual havia sonhado envelhecer, levei comigo minha coleção de jogos. Ela me acompanhou a Curitiba, e comecei a vendê-los para ajudar a pagar as contas da cerimônia do meu segundo casamento – para, anos depois, ouvir da Adelaide que ela tinha pago tudo sozinha. Ao longo dos dez anos deste segundo casamento, vendi muitos outros jogos, pagando contas – especialmente as prestações da casa que comprei, sozinho, achando que envelheceria nela, junto com minha nova esposa.
Lembro de uma vez em que vendi um jogo para o Sérgio por seiscentos reais. Ele me perguntou: mas você não gosta deste jogo? Respondi-lhe: gosto, mas na minha casa tem um jogo sobrando e seiscentos reais faltando.
Acabado o segundo casamento, saí dele achando que emigraria para Portugal. Por isso, me desfiz de quase todos os jogos que ainda tinha. Vendi muitos, doei uns tantos. Jogos, livros, RPGs, DVDs. Deixei para trás uma cauda de coisas que me acompanhara por toda a minha vida adulta.
Abandonei o plano de emigrar. Voltei a ter alguns jogos, uma coleção muito menor do que foi por décadas. De vez em quando compro algum, como fiz hoje.
Ler a mensagem de agradecimento do Michael me fez pensar em tudo isso. E me fez pensar em como eu sou grato a todas as pessoas que me ensinaram a deixar para trás esta cauda, este caudal de coisas que me pareciam tão importantes. Estas podem ficar para trás.
Tudo que sou, levo comigo.
Um complemento… Enquanto caminhava na praia e via a alvorada, refletia ainda sobre isso. Eu ainda estou pagando dívidas que contraí tentando manter meu primeiro casamento, que acabou há quinze anos; e ainda estou pagando dívidas que contraí para comprar a casa que deixei para Adelaide, findo o segundo casamento. Provavelmente nunca vou acabar de pagar estas dívidas, enquanto viver.
Frequentemente penso nestas dívidas, e as considero injustas.
Mas o que minha reflexão me trouxe foi que minhas decisões do passado não podem simplesmente ser esquecidas e varridas para baixo do tapete. Sempre tenho que lidar com as consequências delas. Tudo que sou, levo comigo – inclusive estas consequências.
Não penso que tomei decisões ruins. Muito de bom veio delas – família, filhos, amor. Casas para abrigar família, filhos, amor. Por pesado que seja o preço, o fato é que eu consigo pagá-lo! Por pesado que seja o preço, com ele paguei coisas inestimáveis. Algumas permanecem e vicejam.
Outras se foram… mas ainda vivem em mim. Memórias de risos e gritos, de lágrimas e beijos, de brilhos e sombras.
Sou fruto de tudo isso. Este preço que, por vezes, parece tão pesado, é parte do preço para eu ser quem sou.
É pouco. Sei que ainda vou pagar mais.
Sigo sendo grato a todas estas pessoas que me trouxeram até aqui, e que vão continuar a me acompanhar. Sempre.