Diálogo de um misantropo com sua alma
Uma das características marcantes da literatura é a nossa capacidade de repensar e de reler as obras. As obras, normalmente, não mudam; mas o leitor muda. Há um ano, comecei a reler The Lord of the Rings, pela primeira vez em vinte anos. Estou fascinado com a quantidade de nuances e detalhes que eu nunca notara antes, e a leitura fica muito lenta pela quantidade de notas que faço enquanto leio.
Mas hoje eu lia uma obra bem mais antiga – o Diálogo de um misantropo com sua alma, encontrado em um papiro escrito há quatro mil anos no Egito. Li sua tradução para o inglês no segundo volume de Masks of God, de Joseph Campbell; não sei se ali está a integralidade do texto.
O poema começa com um lamento; seu autor se desespera porque já não tem com quem conversar, já não tem onde encontrar interlocução. “Já não tenho com quem falar / Os irmãos são maus / […] / Pesa-me a dor / Sem um amigo de boa fé”.
Mas a parte que me interessa não é o lamento deste pobre-diabo de tantos milênios atrás, e sim a sequência do poema. Eu a conheci no número 8 de Sandman, “O som de suas asas”.
A morte está diante de mim hoje
Como a convalescença de um doente
Como ir ao jardim depois da doença
A morte está diante de mim hoje
Como o odor da mirra
Como sentar sob uma vela sob um bom vento
A morte está diante de mim hoje
Como o curso de um riacho
Como um homem que volta de sua galera para sua casa
A morte está diante de mim hoje
Como o lar que um homem anseia rever
Após longos anos como cativo
Campbell diz que este poema é uma das marcas do que ele chama de Grande Inversão, o momento no qual a morte deixa de ser percebida como a continuação das maravilhas da vida, e passa a ser entendida como um resgate das dores da vida – a saída do “vale de lágrimas”.
Já este leitor prefere fazer uma pequena inversão, bem pessoal, e enxergar neste poema a celebração da morte como uma das maravilhas da vida.