Fidei defensor

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Hoje cedo eu revi o vídeo Music for Hope – Live from Duomo di Milano. Foi uma apresentação de Andrea Bocelli na catedral de Milão; uma bela catedral gótica, dedicada à Natividade da Beata Virgem Maria.

12 de abril de 2020. Domingo de Páscoa do ano da grande pandemia. Milão e a Lombardia foram duramente atingidas pelo SARS-COV-2. Várias cenas do vídeo mostram suas ruas vazias. Outras cenas mostram as ruas vazias de Brescia, Bergamo, Paris, London, New York.

O vídeo mostra apenas Bocelli e um organista dentro da imensa catedral. Junto ao altar-mor, ele canta quatro músicas: Panis Angelicus (Cesar Franck), Ave Maria (Bach e Gounod), Sancta Maria (Mascagni) e Domine Deus (Rossini).

Ao final, Bocelli se dirige às escadas da praça da catedral, e lá canta Amazing Grace (Newton).

Comovente.

Provavelmente ninguém consegue fugir de seu passado, e especialmente de sua infância. Eu mesmo nunca tentei; penso que sempre fui muito feliz em minha vida. Mesmo quando decidi deixar algo para trás, nunca o fiz por renegar aquela experiência, mas por acreditar que meu caminho leva a outro lugar.

Assim foi com a fé. Fui criado como católico. Batismo, penitência, comunhão, crisma. Catecismo. Sabia o que falar, sabia o que responder, sabia como agir. Mesmo muito jovem, nunca senti o que outros pareciam sentir sobre sua fé. Nenhuma relação pessoal com o divino. Acima de tudo, nada de certezas.

Minhas últimas atividades públicas como católico foram meu primeiro casamento e os batizados das minhas filhas. Mesmo então, há muito que eu renunciara à religião.

Continuo sem ter qualquer certeza da existência de uma divindade, ou de uma consciência continuada após minha morte. Tampouco tenho certeza sobre a visão oposta. Sigo agnóstico; simplesmente não tenho informações suficientes para tomar uma posição.

Mas não renunciei à fé. Minha fé tem outra natureza. Isso ficou-me bem evidente quando visitei a Basílica de S. Francisco, em Assis; eu estava maravilhado com os afrescos dos mestres pré-renascentistas.

Comecei a pensar sobre a visão corriqueira da Renascença, que a coloca como um momento de ruptura. Antes, nesta visão, o homem olhava para o divino; depois, passou a olhar para o humano.

Aqueles afrescos mostravam muito claramente a falácia desta visão. Ali estava a arte daqueles mestres – e, sim, ela olhava para os céus, mas com olhos humanos. Na mesma viagem, vi a magnífica Pietá de Michelangelo, obra-prima da Renascença. E não havia diferença! Em todas as obras estava o mesmo espírito humano.

Não faz diferença se existe ou não uma divindade, se existe ou não um paraíso. A fé existe – e ela também é uma criação humana! A falácia da visão da Renascença como ruptura é pensar em o que é enxergado; eu prefiro pensar em quem enxerga, e vejo com grande alegria a continuidade entre nossos predecessores e nós mesmos. Continuamos a ser humanos, como somos há tantos milênios. Continuamos a criar o nosso mundo.

Em 2016, relembrei a profissão de fé de Robert Heinlein, um de meus autores preferidos. Ela continua a ilustrar bem o que penso. Mas prefiro encerrar esta reflexão com um texto de outro grande autor, Frank Herbert.

“Encontro-me ante a sagrada presença humana. Como eu faço hoje, um dia você fará. Oro à sua presença que assim seja. Que o futuro permaneça incerto, pois ele é a tela que recebe nossos desejos. Assim, a condição humana encara uma perpétua tabula rasa. Nós não temos mais do que este momento, no qual nos dedicamos continuamente à presença sagrada, que compartilhamos e criamos.”

Children of Dune, 1976.


2024 Luiz Cláudio Silveira Duarte https://quartelmestre.com
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