O sonhar

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Para mim, a obra máxima de Neil Gaiman continua a ser Sandman, a série de quadrinhos da qual ele era o argumentista. Meu primeiro contato com Sandman foi em 1989, com a publicação do primeiro número, pela editora Globo. Passei a acompanhar a série, avidamente, até o fim, e já a reli muitas vezes.

O personagem-título, muitas vezes chamado Morpheus, é a corporificação do Sonhar. Quadrinhos e sonhos têm uma história conjunta que vem de muito longe, pelo menos desde Little Nemo in Slumberland. As histórias de Winsor McCay mostravam Nemo alternando entre o mundo real e o mundo onírico. Realidade e sonho se tocavam, mas não se confundiam.

Em Sandman, estes mundos não se confundem: são o mesmo.

Cedo, o leitor descobre que um dos epítetos de Morpheus é Príncipe das Histórias – e as histórias se sucedem. Em algumas, ele é o protagonista; em outras, poderá ser facilitador, espectador, coadjuvante, figurante. E, assim como as histórias mostram que “realidade” e “sonhar” são idênticas, ao mesmo tempo eu me descubro leitor, autor, personagem.

Não me estendo mais sobre a série em si; se lhe despertei o interesse, procure as edições encadernadas, que podem ser encontradas na seção de quadrinhos das livrarias. Quero tratar, aqui, de algumas das histórias, e do que elas me revelam. Mas não sigo direto a este ponto; antes, faço uma pausa para algumas memórias.

Minhas lembranças infantis são escassas, talvez tornadas ainda mais ralas pela doença que há anos me acompanha. As primeiras lembranças são de Petrópolis, onde morei quando tinha quatro e cinco anos. Lá fiz as primeiras amizades de que me recordo, no colégio São José. Mas as vicissitudes da vida levaram minha família, ao longo dos três anos seguintes, para três cidades: Rio de Janeiro, Goiânia, e finalmente Brasília. As primeiras amizades ficaram para trás, e foram muitos anos até que eu conseguisse fazer outras.

Mas eu descobri um refúgio. Em Petrópolis, eu aprendera a ler, e muito rapidamente a leitura tornou-se a minha paixão. Em Goiânia, descobri que havia uma pequena biblioteca no Colégio Marista. A salinha acanhada tornou-se o meu lar fora de casa. No Marista de Brasília, a biblioteca era muito maior, e passei muitos anos me deliciando com o que encontrava ali.

Viajei com Verne e me empolguei com Dumas, li sobre Troia e sobre os olímpicos, descobri a ficção científica e Monteiro Lobato. Ao mesmo tempo, meus pais compravam-me muitos livros, e muitas revistas em quadrinhos; o Gibi de 1974 e os quadrinhos Disney eram meus companheiros de todos os dias.

Naqueles anos, conheci Dom Quixote e a Matéria da Bretanha – as histórias do rei Arthur e seus cavaleiros, que ao mesmo tempo inspiraram e enlouqueceram o fidalgo de Cervantes.

Eu não sabia disso então, e demorei anos a perceber, mas Quixote e Lancelote deixaram marcas em mim, fundas e permanentes.

Alguns anos depois, meu querido avô Luís presenteou-me com uma linda edição do Dom Quixote, em dois volumes, com as ilustrações de Gustave Doré, na tradução dos viscondes de Castilho e de Azevedo; a mesma tradução com que Lobato se divertiu, no início do Dom Quixote para as Crianças. Tenho ainda estes livros, preciosa memória afetiva feita em papel.

Junto a isso, li Bullfinch, Malory, White, Bradley, Stewart; emocionei-me, muitas vezes, com o Excalibur de John Boorman (1981) – cuja trilha sonora me levou ao Anel do Nibelungo, ao Parsifal, e a um fascínio duradouro pela música de Wagner. Pouco tempo depois disso, conheci os RPGs, e com eles passei a me envolver ainda mais diretamente com a Matéria da Bretanha, agora como leitor, autor e personagem – porque o RPG é, acima de tudo, a criação participativa de uma narrativa.

Mencionei, acima, que por alguns anos da minha infância, as vicissitudes da vida de minha família removeram minhas raízes. Quando elas foram se reconstituindo, isso aconteceu já sob o efeito inebriante das histórias, da fantasia – do Sonhar.

Naturalmente, nos anos que se seguiram, tive lições sobre o contraste entre realidade e fantasia. Muitas lições, bastante duras. Como acontece com todo aluno, algumas eu aprendi logo, outras não. Mais de cinquenta anos depois do primeiro desenraizamento, sei que ainda estou aprendendo.

Nos últimos anos, em particular, tive a felicidade de aprender coisas muito importantes. Estou aprendendo, por exemplo, a reconhecer as minhas reações enraivecidas, e a evitar discussões quando estou sob influência da raiva do momento. Aprendi que o amor entre homem e mulher não exige sexo para ser completo; aprendi que a amizade não se exerce apenas quando os amigos estão jogando comigo – mas também aprendi que sexo e jogo continuam a ser formas maravilhosas de comunicarmos amor e amizade.

A lição mais importante tem como foco Quixote e Lancelote. Durante anos, eu me cultivei como um cavaleiro andante, pronto a socorrer os desamparados e a salvar donzelas. Passei a me referir a isso com a expressão “síndrome de Sir Lancelote”, até com certo orgulho.

Mas eu esquecia o exemplo de dom Quixote. Ele e eu fomos inspirados pelas mesmas histórias, pelos altos feitos d’armas, pela ética da cavalaria; ele e eu decidimos tornarmo-nos cavaleiros andantes… e ele e eu, cegos pelas histórias, muitas vezes pioramos o que tentávamos melhorar.

Quando me dei conta disso, mudei o nome para “síndrome de dom Quixote”, e tenho procurado identificar quando ela se apresenta em minha vida. Carregar contra moinhos de vento normalmente causa mais mal a mim do que aos moinhos; de forma análoga, procurar salvar donzelas que não querem ser salvas traz seus próprios problemas.

E agora, retorno ao Sandman. O Sonhar não é um mundo à parte, como o mundo de Nemo; é o nosso mundo, possivelmente visto por outra perspectiva.

Usamos histórias para dar sentido ao mundo. Procuramos regularidades, criamos tramas, identificamos protagonistas e antagonistas. Queremos desfechos. O exercício de memória que faço neste texto é um exemplo perfeito: procuro criar uma narrativa, coesa e coerente, a partir de memórias de eventos de minha vida, e da minha interpretação destas memórias.

A narrativa não cria a realidade, e nem a altera. O que ela faz é aumentar a compreensão que temos da realidade. Isso perpassa toda a série do Sandman, mas fica explícito no número 18, A Dream of a Thousand Cats: os sonhos não trazem justiça ou sabedoria, e sim revelação.

Para alcançar a revelação, não é suficiente mostrar a realidade; esta já é nossa conhecida. O que é necessário é mostrar outra realidade, para que nela possamos entender a “nossa” realidade. Outra história de Sandman – o número 19, A Midsummer Night’s Dream – mostra isso. Robin Goodfellow está assistindo à peça de Shakespeare, e fala “Isto é magnífico – e é verdade! Nunca aconteceu, mas é verdade! Que arte mágica é esta?”

Quadrinho com Robin Goodfellow
Robin Goodfellow

Uma das mais belas releituras do Dom Quixote encontra-se em Man of la Mancha. Sei das diferenças entre a peça de teatro e o filme, e sei que ambas abordam de forma distinta justamente esta mistura de fantasia e realidade. Como não vi a peça, trato aqui do filme de 1972. Em especial, penso no monólogo de Cervantes:

O Duque: O homem deve ver a vida como ela é.

Cervantes: A vida como ela é. Vivi mais de 40 anos e vejo a vida como ela é. Dor, miséria, muita crueldade. Eu ouvi todas as vozes da mais nobre das criaturas. Os gemidos dos enjeitados nas ruas. Fui soldado e escravo. Vi meus companheiros caírem em batalha, ou morrerem devagar, sob o chicote, na África. Segurei-os em seus últimos momentos. Estes homens viram a vida como ela é. Mesmo assim, morreram sem esperanças, sem glórias, sem belas palavras finais. Apenas os olhos cheios de confusão… perguntando por quê. Não creio que perguntassem por que estavam morrendo, mas sim por que tinham vivido. Quando a própria vida parece louca, quem sabe onde a loucura começa? Talvez ser muito prático seja loucura, ter sonhos seja loucura. Procurar tesouros onde só há lixo. Sanidade demais pode ser loucura! E a pior de todas… ver a vida como ela é, e não como deveria ser!

O poder do Sonhar está justamente em não ser o mundo que é. Sonhar é trazer um mundo de ouro a um mundo de ferro. No número 4 de Sandman, A Hope in Hell, Morpheus fala “Que força teria o Inferno, se aqueles presos aqui não pudessem sonhar com o Paraíso?”

Não abandono o Sonhar, não renego as histórias. Assim como meus amigos, elas são a minha força. E lembro, para encerrar esta reflexão, uma última cena de Sandman. No número 31, Three Septembers and a January, vemos Norton I, Imperador dos Estados Unidos e Protetor do México. Um personagem histórico, amplamente considerado como louco, tanto em seu tempo quanto hoje.

Mas lemos que a sua loucura o mantém são – e que ele não é o único.

Bons sonhos.



2024 Luiz Cláudio Silveira Duarte https://quartelmestre.com
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