Resumo de uma vida lúdica

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Dom Quixote enlouquecido por suas leituras
En resolución, él se enfrascó tanto en su letura, que se le pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho leer, se le secó el celebro, de manera que vino a perder el juicio. Llenósele la fantasía de todo aquello que leía en los libros, así de encantamentos como de pendencias, batallas, desafíos, heridas, requiebros, amores, tormentas y disparates imposibles; y asentósele de tal modo en la imaginación que era verdad toda aquella máquina de aquellas sonadas soñadas invenciones que leía, que para él no había otra historia más cierta en el mundo. – El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha

Uma curta biografia

Nasci no Rio de Janeiro em 4 de março de 1964. Ao que parece, meu nascimento não teve qualquer relação causal com os eventos ocorridos 27 dias depois dele.

Meu pai foi oficial do Exército e isso fez com que nossa família passasse por vários locais. Moramos em Rezende, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, em Goiânia e afinal em Brasília. Lá, após alguns anos, meu pai deixou a carreira militar e a família tornou-se candanga.

Cresci em Brasília. Meus filhos nasceram lá: Arthur, Thalia e Lilah. Fiz amigos, alguns dos quais ainda me acompanham. Minha carreira profissional também se desenvolveu na capital federal.

Eu e os jogos

Minha relação com os jogos é antiga. Ainda jovem, aprendi a jogar Xadrez com meu avô José. Quando comecei a estudar no Colégio Marista de Brasília, o Irmão Hilário continuou a ensinar-me as possibilidades deste jogo. Joguei e estudei muito o Xadrez, mas uma decepção em um campeonato de que participei tirou-me o gosto por continuar a me dedicar a ele.

De qualquer maneira, a esta altura outros jogos já me tinham sido apresentados. Meu annus mirabilis lúdico foi 1978; conheci o Diplomacy e comecei a colecionar a Todos os Jogos, além de conhecer dois amigos que me acompanham até hoje: Marcelo e José Theodoro.

Capa da versão brasileira do Diplomacy.

Marcelo e José Theodoro eram meus colegas no Marista, embora de outras turmas. José Theodoro foi-me apresentado por um grande amigo, Jader. Theodoro falou-me de um jogo interessante, 1914 – O Jogo da Diplomacia (a versão brasileira do Diplomacy). Ele me apresentou ao Marcelo, e começamos a jogar.

Fui fisgado imediatamente. Diplomacy é um jogo excelente, e ficava ainda melhor nas raras vezes em que conseguíamos mais jogadores (o ideal é jogar com 7 jogadores, mas isso era difícil de conseguir). Até hoje é um de meus jogos preferidos.

Alguns anos depois de ter sido apresentado ao Diplomacy, tomei contato com o que era então o mundo deste jogo por via postal. Isso foi antes do advento da Internet comercial; os jogos eram conduzidos por cartas, e moderados por pessoas que publicavam os resultados das partidas em fanzines feitos com máquina de escrever e xerox. Eu comecei a participar deste mundo por intermédio de um fanzine chamado Rambling Way, mantido por W. Andrew York (“Andy”).

Meu primeiro jogo foi um fiasco. Eu estava jogando com a versão brasileira, e não sabia que ela era uma versão pirata com modificações. Resultado: eu dei ordens que eram inválidas e entrei pelo cano. Eu publiquei uma nota no Boardgamegeek a respeito das diferenças entre a versão brasileira e a versão original; ela pode ser encontrada em http://www.boardgamegeek.com/thread/243212/brazilian-edition.

De qualquer maneira, eu logo adquiri um exemplar da versão americana e pude participar das partidas sem mais percalços. Ao mesmo tempo, Andy convidou-me a escrever uma coluna para o Rambling Way, e eu comecei a mandar para ele The Brazilian Times.

Todos Os Jogos

Capa da coleção Todos os Jogos.

Em 1978, a Editora Abril decidiu aceitar uma ideia doida: publicar uma coleção em bancas de jornal, com fascículos quinzenais, nos quais vinham tabuleiros em papel e peças em plástico de jogos criados por várias culturas. A ideia era de Mário Seabra (1931-2012), o primeiro criador profissional de jogos no Brasil. Pelo que eu soube muito tempo depois, o plano era publicar 27 números (o bastante para completar a caixa dos jogos) e, se tivesse havido procura suficiente, continuar depois a publicação.

Isso não aconteceu; o número 27 foi o último publicado. A Abril ficou devendo alguns jogos prometidos, em particular o Go. Um de meus amigos, Marcus Vinicius, escreveu para a editora reclamando disso e mandaram para ele uma grande quantidade de peças, tabuleiros e regras, que teriam sido publicados se a coleção continuasse — e entre eles estava o Go. Seguindo a dica dele, fiz a mesma coisa e também recebi o pacote.

Muito tempo depois, eu terminei por doar a minha coleção para meu amigo Edward. Infelizmente, ele a perdeu em uma mudança… nunca mais consegui achar alguém que tivesse a coleção mais-que-completa. Mesmo Marcus Vinicius não guardou a dele.

Em todo caso, foi esta publicação que me abriu os olhos para a variedade do mundo dos jogos. Eu comecei então a ler avidamente tudo o que eu podia ler sobre o assunto, e — claro — também a jogar muito. Todos os Jogos foi publicada no auge da indústria de wargames nos EUA, e foi influenciada por eles; já o primeiro número da revista trazia um wargame introdutório da SPI, o Strike Force One (aqui chamado de Batalha das Quatro Horas). Outros dois foram publicados: Yom Kippur, de Mário Seabra, e Wurzburg, de Jim Dunnigan (também publicado pela SPI).

Mais uma vez fui fisgado, e meus amigos comigo. Não participei, mas soube até de um campeonato de Batalha das Quatro Horas realizado no colégio. Jogamos estes jogos muitas vezes.

Cada exemplar da coleção incluía a Revista dos Jogos, uma revista com notícias e variedades sobre o mundo dos jogos. Um dos números da revista trouxe a notícia da publicação de um novo wargame pela SPI: The Campaign for North Africa, de Richard Berg. A descrição do jogo — 1.800 peças, um mapa com 3 metros de comprimento e outros detalhes — atraiu de imediato a minha atenção. Mas na época era impossível importar por via postal. Assim, quando o pai de um amigo, Gustavo, foi aos EUA em 1979, trouxe o jogo na bagagem. Gustavo desistiu de enfrentar o monstro e o vendeu para mim. Passei boa parte de 1980 traduzindo laboriosamente as regras e, no ano seguinte, eu e meus amigos encaramos o jogo.

A Confraria Lúdica

A Confraria Lúdica em 2008

Ao longo de 1979, José Theodoro, Marcelo e eu nos reuníamos praticamente todas as tardes da semana para jogarmos — principalmente wargames, Diplomacy ou War. Um dia, pensamos em criar uma organização mais formal para nosso grupo, e assim nasceu a Confraria Lúdica. Além de ser um dos fundadores, tenho a honra de ser o Quartelmestre da nossa Confraria.

Com o passar dos anos, outros amigos foram sendo incorporados à Confraria. Hoje os confrades estão espalhados por várias cidades do Brasil e do mundo, mas a amizade que se formou entre nós ao redor das mesas de jogo ainda perdura. Acredito que a Confraria seja o grupo de jogadores brasileiro mais antigo ainda em atividade.

Nos anos que se seguiram, os confrades foram os meus parceiros preferenciais de jogos. Na década de 1980, quando eu já estudava na UnB, algumas vezes espalhei cartazes pelo campus convidando interessados a conhecer jogos. Poucos respondiam, mas os que o fizeram tornaram-se bons amigos e vários entraram para a Confraria. Também na década de 1980 conseguimos finalmente importar os primeiros jogos dos EUA, quase sempre wargames publicados pela Avalon Hill.

Em 1984, a leitura de revistas internacionais sobre jogos e de alguns catálogos de empresas de jogos revelaram um novo gênero de jogos, até então desconhecido para mim: os role-playing games.

Role-Playing Games (RPGs)

Middle-Earth Role-Playing.

A ideia de converter histórias em jogos foi uma revelação. Eu tinha acabado de ler O Senhor dos Anéis, na edição da Artenova, e como não havia previsão de conseguirmos um RPG tão cedo, decidi criar o meu, baseando-o na história de Tolkien.

Foi um desastre. Em retrospecto, hoje eu sei que o que eu fiz foi um railroading da pior espécie — ou seja, não dei decisões significativas para os jogadores e simplesmente os conduzi pela história. Ninguém gostou, e abortamos a tentativa quando a Sociedade do Anel chegava a Moria.

Mas, em 1986, meu confrade Adriano viajou à França e de lá trouxe três RPGs: Middle-Earth Roleplaying (MERP, edição inglesa), Pendragon (edição francesa) e Rêve du Dragon (original francês). Isso finalmente me deu condições de jogar. Começamos pelo MERP, e Adriano tentou heroicamente decifrar as regras do Pendragon (já que meu francês era então inexistente). O Rêve du Dragon ficou de lado, e acabou sumindo na casa do Adriano.

Desta vez deu certo. Eu logo assumi minha vocação megalomaníaca e tornei-me o mestre das partidas. Meus confrades foram minhas cobaias, e sofreram com isso — afinal, eu não apenas era um mestre inexperiente, como ainda não tinha material de apoio que me ensinasse a mestrar. Em todo caso, estas experiências serviram para ensinar-me uma arte preciosa para um mestre de RPG: a improvisação.

Alguns de meus confrades se desinteressaram dos RPGs, outros continuaram a jogá-los. Novos jogadores foram entrando no meu círculo, quase todos oriundos da UnB. Conheci outros sistemas: do MERP passei ao Rolemaster e dele segui para GURPS, AD&D (2ª edição), World of Darkness, Call of Cthulhu e muitos outros. Com o passar do tempo minha capacidade como mestre cresceu, e hoje considero-me um mestre bem decente.

As pressões da vida prática a esta altura tinham reduzido consideravelmente a disponibilidade dos confrades para os jogos de tabuleiro. Passei anos jogando quase que apenas RPGs, com um ou outro wargame de vez em quando. Durante a década de 1990, joguei por alguns anos os trading card games como o famoso Magic: the Gathering, mas minha concentração era mesmo nos RPGs. Mesmo o fim da Avalon Hill, em 1998, causou pouco impacto.

Os jogos digitais me atraíram por algum tempo, mas as limitações inerentes ao meio digital — especialmente antes da Internet comercial — terminaram por reduzir o seu apelo.

Em 2005, eu e Theodoro decidimos nos aventurar pelo mercado de wargames e fizemos uma sociedade para republicar o Wurzburg. Compramos da Decision Games os direitos de publicação em português e fizemos uma pequena tiragem. Não tivemos sucesso, mas quando eu fui procurar maneiras de divulgar o lançamento acabei descobrindo que outra revolução no mercado de jogos estava acontecendo no exterior: a volta dos jogos de tabuleiro.

Os jogos de tabuleiro modernos

Primeiro Retiro Lúdico, abril de 2013.

Comecei a tomar conhecimento dos jogos que estavam conquistando corações e mentes pelo mundo com alguns clássicos, como o Puerto Rico e o Carcassonne. Em 18 de novembro de 2006 participei da primeira jogatina aberta de Brasília, patrocinada pelo Jean Marconi Carvalho, que usou o nome da Festa do Peão de Tabuleiro (criado por um grupo de jogadores de São Paulo para os seus eventos).

Nos anos seguintes continuei a me embrenhar por este novo mundo lúdico. Conheci jogos cooperativos, como o Shadows Over Camelot; jogos estratégicos, como o Caylus; jogos abstratos, como o Ubongo; e muitos outros.

Em 14 de abril de 2007 abri as portas da minha casa para a 1ª Open House Lúdica, e dezesseis pessoas apareceram para jogar. As Open Houses Lúdicas continuaram, sem periodicidade regular, e cheguei a reunir mais de 40 pessoas para jogarem. Nestas reuniões tive o prazer de conhecer muitos novos amigos, e especialmente tive a oportunidade de conhecer e prestigiar os primeiros passos de dois grupos que hoje marcam a vida lúdica de Brasília: o Heavy Games Brasília e o D30 RPG.

Quando me mudei para Curitiba em dezembro de 2009, comecei a procurar jogadores na cidade. Encontrei poucos e esparsos jogadores, e assim passei a procurar fomentar o hobby por lá. Por meio da Internet e da propaganda de boca, fui aos poucos conseguindo reunir um bom grupo de jogadores. Na época eu mantinha um forum aberto nas páginas da Confraria, e este grupo passou a utilizar o forum como ponto de encontro e de conversa. Em 13 de novembro de 2010, ajudei a organizar o I Curitiba Lúdica, do qual participaram 46 jogadores; o evento tornou-se bimestral e, em edições posteriores, chegou a reunir mais de 100 participantes.

Em 2013, comecei a organizar o Retiro Lúdico, o primeiro evento de hospedagem para jogadores no Brasil.

Atividades acadêmicas

Meu primeiro vestibular, na UnB, levou-me ao curso de Medicina. Embora fosse uma ambição antiga, logo percebi que não era talhado para a carreira médica e mudei de curso. Interessei-me pelo campo da Computação, então ainda novidade, e fiz vestibular para este curso.

Passei alguns anos no curso de Processamento de Dados da UnB, mudando do curso de curta duração para o de duração plena, mas a indefinição da grade curricular do curso acabou me desencantando após alguns anos. Neste meio tempo, passei quase um ano em São José dos Campos, estudando para ser controlador de tráfego aéreo, mas devido a uma dose cavalar de teimosia acabei sendo expulso do curso.

De volta a Brasília, comecei a trabalhar como programador de computadores, mas a insatisfação com os problemas do curso terminou por me levar a prestar novo vestibular, desta vez para Direito. Não tinha e não tenho grande interesse pela área jurídica; escolhi este curso por ser o que me exigiria menos créditos para a graduação.

Continuei trabalhando como programador enquanto seguia o curso de Direito. Trabalhei na Portobrás, no Ministério das Relações Exteriores, no Ministério da Reforma Agrária, no Ministério da Previdência Social e no Superior Tribunal Militar.

Em retrospecto, posso ver que meus dois cursos forneceram conhecimentos muito úteis. A Computação deu-me a fundamentação para conseguir utilizar bem as ferramentas da nossa Era da Informação; já o Direito deu-me os meios para entender minimamente o sistema jurídico brasileiro — e perceber que há cada vez mais leis concedendo direitos e menos interesse em cumprir as leis que determinam deveres. Continuo achando Direito um assunto muito chato, mas é um conhecimento necessário.

Recém-formado, comecei a prestar concursos e logrei passar no concurso para Consultor Legislativo do Senado Federal. Tive a oportunidade de trabalhar com pessoas formidáveis lá. Apesar da má fama, a maior parte dos funcionários de carreira do Senado é formada por gente que trabalha duro e que tem grande capacidade. É uma pena que quem ganha as manchetes são os picaretas.

Durante meu período no Senado consegui aproveitar uma antiga paixão acadêmica. Sempre fui fascinado pela História e isso me levou a ingressar no mestrado em História das Relações Internacionais, novamente na UnB. Infelizmente não concluí o curso, mas isso me permitiu trabalhar por um ano como professor substituto no curso de graduação em História, uma experiência muito preciosa.

Minha aposentadoria foi uma das razões que levaram à minha mudança para Curitiba, em 2009.

Na UFPR

Ainda antes de deixar Brasília, e pensando em voltar ao mestrado, eu mais uma vez ingressara na UnB, desta vez no curso de graduação em História. Meu raciocínio era que assim eu conheceria melhor o curso e os professores, e isso me daria conhecimentos úteis para o mestrado.

Cursei a disciplina de Introdução aos Estudos da História com o professor Francisco Doratioto. Foi um curso muito bom, bastante estimulante. Perto do fim do semestre, com a mudança para Curitiba já encaminhada, conversei com o prof. Doratioto sobre a minha intenção de procurar o mestrado em História, e ele me recomendou procurar cursar disciplinas do mestrado como aluno especial, antes de prestar o concurso.

Foi uma excelente recomendação e assim o fiz. Depois que me acertei com a vida em Curitiba, fui à UFPR e me inscrevi em uma disciplina da pós-graduação em História, ministrada pela professora Marcella Lopes Guimarães. Foi um estudo muito interessante, concentrado na obra de Georges Duby, que eu pouco conhecia até então.

No semestre seguinte, cursei outra disciplina, desta vez ministrada pelo prof. Renan Frighetto, ao mesmo tempo que prestava o concurso para o mestrado. Não passei no concurso, infelizmente; no ano seguinte, voltei a tentar, mas novamente não passei.

Desde que eu chegara a Curitiba eu estava envolvido com diversas iniciativas para ajudar a fomentar o hobby dos jogos de tabuleiro na cidade, da mesma forma que eu fizera em Brasília por muitos anos. Um dia, um participante em uma destas atividades sugeriu que eu me informasse sobre o curso de Design da UFPR, dizendo que este curso incluía pesquisas sobre jogos.

Fui me informar e comecei a perceber que, de fato, ali eu poderia estudar algo que me fascina há muitos anos. Tentei o concurso uma vez e não passei; a seguir, cursei uma disciplina sobre design de entretenimento digital com o prof. André Battaiola e tentei novamente o concurso. Desta vez passei e tornei-me seu orientando.

Em 2015, concluí o mestrado em Design, estudando características formais dos jogos. Minha pesquisa continua desde então.

Publicações acadêmicas

Minhas publicações acadêmicas (e outras) encontram-se nestas páginas, sob o menu Criações.

Boardgamegeek

Eu sou um usuário do Boardgamegeek, um magnífico repositório de informações sobre jogos de tabuleiro, desde 2006.

Um dos principais usos que eu dou ao BGG é a manutenção do cadastro de minha coleção de jogos de tabuleiro – mas a página no GeekGroup App é bem mais amigável.

Também mantenho um registro de partidas jogadas desde fins de 2006. As estatísticas calculadas com os dados no BGG estão em https://extstats.drfriendless.com/geek.html?geek=quartelmestre.

Ainda no BGG, publiquei uma geeklist sobre meu histórico de jogos.



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