Provocando a ira sagrada

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Recentemente, a estreia do mais novo filme baseado em Dungeons & Dragons causou um certo furor no meio dos aficionados por RPG. Não vi o filme, e portanto nada digo sobre ele; mas isso não me impediu de dar uma resposta extremamente maldosa ao comentário elogioso de um amigo.

Amigo entusiasmado

“No final de semana, vi o filme do D&D. Que filme genial!!! Saí com uma baita vontade de jogar RPG.”

Resposta extremamente maldosa

“Peraí… Se viu um filme sobre D&D, porque deu vontade de jogar RPG? É mais ou menos como ver um filme sobre pôquer e sair com vontade de jogar futebol.”

A brincadeira saiu na hora, para cortar a bola alta que veio na minha mão… mas, depois, ela rendeu uma reflexão sobre o D&D e os RPGs em geral, e é isso que trago aqui.

Vamos poupar seu tempo e sua vontade de me xingar? Sim, o D&D é um RPG. Fiz uma brincadeira. Certo? Se quiser, pode parar por aqui…

… porque agora quero aprofundar um pouco a discussão: o D&D em especial, e muitos outros sistemas old school, têm uma característica que os distingue de outros RPGs — e a minha brincadeira maldosa vem justamente daí.

RPG — Role-Playing Game; em português, “jogo de representação de papéis”. Vamos examinar os dois componentes deste nome.

Representação de papéis é uma atividade cultural muito antiga, mesmo antes de ser organizada sob a forma do teatro. A parte “RP” da sigla é, assim, muito familiar, indo dos rituais sagrados às brincadeiras.

Brincadeiras, provavelmente, são ainda mais antigas que a representação de papéis, e nem mesmo são exclusividade da nossa espécie. Por sua vez, jogos guardam uma proximidade muito grande com as brincadeiras; a distinção está na sua ênfase em regras formais.

O jogo é definido e circunscrito por suas regras. Se eu pego tabuleiro e peças de Xadrez, mas faço movimentos aleatórios com elas, não estou jogando Xadrez. Da mesma maneira, se eu uso regras diferentes — como as regras das centenas de variantes deste jogo —, não estarei jogando Xadrez, e sim uma de suas variantes.

Em contrapartida, quaisquer pessoas que usem os mesmos componentes e usem as mesmas regras estarão jogando Xadrez.

A grande inovação do D&D foi juntar dois fenômenos distintos, “RP” e “G”, para com ambos criar algo mais. Neste jogo, a representação de papéis ganha regras — e assim, passa a ser definida e circunscrita por elas.

Circunscrita mesmo! Com todas as transformações que sofreu ao longo de cinquenta anos, D&D e outros jogos old school usam um conjunto muito restrito de papéis como base: a tríade combatente-feiticeiro-ladino. É claro que se pode fazer muito com esta base; mas, por outro lado, ela é uma limitação fundamental.

Uma limitação, justamente, à parte “RP” da sigla. Esta percepção não é nova, longe disso! Lembro de ler artigos na revista Dragon discutindo, por exemplo, se fazia sentido haver “classes coadjuvantes” — que tal os personagens dos jogadores pechincharem com um mercador nível 11? As pessoas, afinal, são muito mais variadas do que aquela tríade.

Mas estes jogos mantêm várias outras limitações. Não apenas os personagens jogadores são restritos às várias classes definidas nas regras: as suas capacidades também são. Dentro de cada classe, há um conjunto limitado e bem definido de ataques, equipamentos, aprendizados, etc. Pode-se dizer que são as jogadas possíveis para o jogador.

Mais acima, eu mencionei o teatro. Existem tradições teatrais que se aproximam muito deste modelo de papéis circunscritos. Na cultura europeia, uma destas tradições é a Commedia dell’Arte: os papéis são sempre os mesmos — o velho avarento, o sabichão arrogante, o militar empavonado, o casal de enamorados.

É possível criar uma grande quantidade de histórias dentro de limitações assim, como sabem os praticantes da Commedia — e sim, do D&D! Podem ser histórias ricas, medíocres ou pobres, mas isso não depende das limitações e sim dos jogadores.

O grande problema é que estas limitações impedem que outras histórias sejam contadas! — que outros papéis sejam representados! Incidentalmente, as histórias que se podem contar com o D&D dificilmente se prestariam à Commedia, e vice-versa…

Isso é da natureza de limites, claro: dentro de um círculo, é possível traçar uma infinidade de caminhos, em muitos formatos, mas sempre serão limitados pelo círculo.

É possível ir além? Desenhar fora do círculo? Ultrapassar as limitações das regras? Claro que sim! Mas, da mesma forma que acontece com as variantes do Xadrez, já não estaremos jogando Xadrez, e sim a variante.

Retomo o ponto da minha brincadeira maldosa. O ponto de partida dela é que, no D&D e outros jogos old school, o “G” limita fortemente o “RP”. Em outros jogos, a limitação é menos pronunciada, ou segue em direções distintas.

Felizmente, não estamos presos aos círculos, e sempre podemos desenhar onde queremos.



2024 Luiz Cláudio Silveira Duarte https://quartelmestre.com
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