Quem aprende, quem erra

Talleyrand e Santayana ensinam lições complementares.

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Talleyrand não criou uma frase famosa que lhe é atribuída, mas a apreciava e parece tê-la usado.

Os Bourbon eram a dinastia reinante em França até 1792, quando Luís XVI foi decapitado. Os regimes revolucionários foram substituídos pela monarquia napoleônica; depois dela, em 1814-1815, consolidou-se a restauração dos Bourbon. Imediatamente, eles e seus apoiadores passaram a adotar medidas reacionárias e revanchistas, exacerbando novamente os ânimos contra a casa real.

Quando Talleyrand empregou a frase famosa, referia-se aos Bourbon: “não esqueceram nada, mas não aprenderam nada”.

Pensei novamente neste caso, ao ler hoje um texto sobre o primeiro aniversário da insurreição do 8 de janeiro, com o título “É isto que significou o 8 de Janeiro”, de autoria de Orlando Calheiro.

Ele menciona os tímidos avanços sociais dos governos do PT, como a melhor distribuição de renda, mas pondera:

Não por acidente, alguns dos avanços desse período, como a citada melhora na distribuição de renda, acabaram sendo rapidamente fagocitados pela estrutura conservadora da sociedade brasileira, terminando por reforçá-la.

Pois é. As “esquerdas” não esquecem a História, mas também não aprendem com ela. Parecem sempre se surpreender, quando os oprimidos deixam de ser oprimidos, e imediatamente passam a ser opressores. Ou quando os beneficiados pelas suas políticas imediatamente demonstram serem conservadores – ou mesmo reacionários --, e não “progressistas”. Nossos pensadores das “esquerdas” não entendem como é possível: muitas pessoas beneficiadas pelas políticas sociais e identitárias dos governos do PT, ontem, hoje apóiam causas e políticos conservadores e reacionários.

Há coisa de um ou dois anos, li em The Guardian uma matéria sobre uma pequena cidade dos EUA. Lá, por muito tempo, tinha havido toda uma mobilização “progressista” para dar voz a uma minoria muçulmana significativa. A campanha contra a discriminação e o anti-islamismo (muito reais!) deu certo, e nesta ocasião havia uma maioria de legisladores locais muçulmanos. Imediatamente, o legislativo local passou uma série de medidas repressoras contra pessoas LGBTQIA+, além de algumas outras pautas em linha com uma interpretação conservadora das leis islâmicas. Naturalmente, os “progressistas” da cidade estavam perplexos, ao verem os oprimidos do passado se transformarem nos opressores do presente.

Orlando Calheiro remonta a 1964, para procurar entender o 8 de janeiro. Ele tem razão, claro, mas podemos ir mais além. Afinal, este tipo de violência já não era nova no Brasil de 1964. Mas eu penso em um exemplo, um pouco mais distante.

O Haiti foi palco da única revolta de escravos bem-sucedida no Novo Mundo. Os escravos massacraram seus opressores, e proclamaram um novo Estado – um império, a primeira das três monarquias americanas. Poucos anos depois disso, as proclamações libertadoras pós-revolta foram total ou parcialmente abolidas, e o Haiti voltou a ser um regime escravocrata. Ainda hoje, subsiste lá a terrível escravidão doméstica infantil dos restavecs.

Há muito pouco de novo sob o Sol. Uma das coisas que não é nova é a natureza humana. A História mostra que pessoas que pensam em seus semelhantes, que agem em prol deles, que procuram ajudar os desvalidos, são sempre uma minoria. Talleyrand pode dar o braço a Santayana: tanto os que não aprendem a História, quanto os que não aprendem com ela, vão repetir erros do passado.



2024 Luiz Cláudio Silveira Duarte https://quartelmestre.com
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